segunda-feira, 19 de julho de 2010

Blindado por Deus


No fogo cruzado da guerra travada entre polícia e tráfico de drogas, um homem circula imune. Respeitado por bandidos e políticos, por comunidades carentes e pelo Bope, o pastor Rogério Menezes conquistou esse privilégio graças à sua neutralidade e sua sincera missão: salvar vidas e resgatar almas. Conheça o homem que, há 17 anos, pacifica o Rio de Janeiro usando o verbo como arma

Bruno Torturra Nogueira

Foi uma revelação. Não uma espiritual, ao contrário. Uma experiência de um extremo realismo, mas, qual uma epifania, capaz de transformar qualquer um que a viva. De mãos dadas, formamos uma roda de 13 homens. Uma mão ligada a um rapaz de 20 anos, líder do tráfico de oito favelas cariocas. Outra ligada ao pastor Rogério, que conduz a oração. “Ó, Pai celestial, abençoa esses homens, Pai! Protege esses homens, Pai.” Estamos na calçada em frente a um terreno baldio, dentro de uma favela na zona norte carioca. É começo de madrugada. Três homens estão de escolta, seguram fuzis AR-15, um deles uma metralhadora. E todos vestem cintos que sustentam pistolas e granadas. “Pai, afaste o mal daqui, tira todo pensamento maligno. Proteja a vida deles, ó, Pai!” Temos os olhos fechados e oramos com a cabeça baixa. Os traficantes rezam com granadas ainda na cintura, mas seus fuzis e escopetas estão escorados no muro atrás de nós. Seus walkie-talkies seguem nervosos em chiados: “O blindado tá na ponte, câmbio”.

O aviso era claro. O caveirão do Bope estava pronto para invadir a favela. E quando chega o caveirão, irmão, não tem conversa. É bala. “Ó, Pai celestial”, segue o pastor Rogério, “desvie as balas que vierem na direção desses homens. Permita que eles vivam mais e que deixem esse caminho e encontrem a salvação em Teu filho amado Jesus!” A voz do pastor precisava soar bem alto para ser escutada enquanto carros passavam em alta velocidade e rapazes com meio corpo para fora da janela gritavam a letra do funk pancadão que estourava no toca-fita. Era sábado, dia de baile. Dia em que tráfico, polícia e população da favela estão em alerta e excitação máximas.

“Palmas pra Jesus”, Rogério encerra a oração. Todos aplaudem, os homens do tráfico penduram em si o arsenal e saem em dois automóveis para esperar o Bope em melhor posição. Apenas um fica, dizendo: “Tranquilo… o caveirão ainda tá longe”. E pede uma bênção exclusiva ao pastor. Enquanto o rapaz gaba-se de ser piedoso, apesar de vez ou outra picotar inimigos com uma espada, explica por que está sem medo de morrer. “Se eu for passado tá tranquilo. Vou com Jesus amarradão”, resume ao pastor que, compassivo, escuta a tudo com olhar neutro. “Você ainda vai sair daqui comigo para a igreja. Vai ser pastor”, profetiza um dos maiores, e invisíveis, pacificadores da guerra travada no Rio de Janeiro.

Há 17 anos Rogério Menezes trabalha assim, entrincheirado nos piores núcleos da violência e do crime organizado, tentando pacificar e evangelizar criminosos na ativa ou em presídios. E, como a reportagem pôde testemunhar, criou uma reputação e um respeito tão grandes dentro das comunidades e facções que ele consegue entrar em qualquer favela, conversar com qualquer bandido, qualquer chefe de morro. E pode, sem nenhum constrangimento, levar consigo dois repórteres a tiracolo. Em uma noite andamos na perua de um procuradíssimo assaltante que, ostentando ouro e histórias tenebrosas, atende ao pedido do pastor Rogério para nos falar sobre como funciona seu negócio. Demos plantão em frente a uma boca de fumo onde, com frequência, soldados do tráfico armados com calibrosas armas desciam das motos, despiam-se de armas e pediam cabisbaixos uma oração a Rogério. Cruzamos uma deserta fronteira entre duas facções rivais do tráfico e fomos recebidos com igual disposição.

Tamanha credibilidade de Rogério vem de duas fontes: sua neutralidade ao caminhar na inflamada ponte entre polícia, tráfico, milícias e facções; e seu passado. Ele também veio de uma vida criminal. E sabe, de experiência própria, quais são os demônios no coração de um homem à margem da lei e da sociedade. Ele é fruto e catalisador de uma conhecida realidade, mas pouco testemunhada pela mídia: o avanço das religiões evangélicas dentro das comunidades carentes. E, especialmente, dentro do tráfico de drogas. “Todo traficante acredita muito em Jesus”, é o que escutamos da boca de Rogério e de diferentes traficantes.

Por conta de seu acesso, seu carisma e seus promissores resultados, o AfroReggae (influente ONG carioca que cria pontes entre as comunidades carentes, Estado e empresas como forma de desenvolvimento social) contratou o pastor Rogério para suas fileiras. “Ele se arrisca de uma maneira muito intensa, faz algo que nunca vi”, resume José Júnior, criador da ONG. “Como mediador e salvador de vidas ele é imbatível. Se mete em confusões que ninguém se meteria. E não julga quem está salvando, não importa quem é… o negócio é salvar vidas. Por isso os bandidos o respeitam. Hoje ele mistura religiosidade a projetos sociais”, completa. Rogério coordena um programa em presídios para a reinclusão de ex-detentos no mercado de trabalho. E, claro, usa a evangelização como a principal ferramenta de transformação. De noite, no entanto, faz o trabalho “voluntário” de visitar as comunidades onde é chamado para dar bênçãos e salvar vidas amarradas para morrer. É o caso de Emerson.

Há três anos, Rogério recebeu um telefonema avisando que um moleque estava para ser executado. Entrou em seu Uno e se apressou para chegar ao líder do morro. Emerson estava um trapo humano. A cabeça aberta por pancadas de cano. Tiros nas mãos. A cara enfiada em fezes de porco. O estômago cheio de gasolina que foi obrigado a beber. Em minutos seria queimado vivo. Clamando por piedade e citando a Bíblia, Rogério levou Emerson para um hospital – três dias em coma. E de lá para a igreja.

Renascido em Cristo e agora evangelizador, Emerson dá bênçãos junto com nosso pastor. E tornou-se amigo dos traficantes que o torturaram. Hoje ajuda a reduzir o número de execuções dentro do tráfico de drogas usando a Palavra como amaciante de corações implacáveis. É por essa estranha e bem-sucedida relação do crime organizado com o evangelho que começamos nossa entrevista.


Por que você acha que a igreja evangélica conseguiu crescer tanto dentro do tráfico?
Porque o evangelho é demonstração de virtude e poder. Pra chegar até aqueles homens armados de fuzis, pistolas, granadas, fortemente armados, não dá para chegar com blablablá. Mas, se você chega com poder, faz uma oração por eles, alguns caem no chão endemoniados. Aí as pessoas te dão credibilidade. E vão se convertendo. É por isso que hoje você quase não acha mais terreiro de macumba na favela. O próprio Bem-te-vi da Rocinha [que foi chefe do tráfico na favela] sentava-se comigo e chorava. Ele falava: “Pastor, a sociedade me marginaliza, fala que eu sou um exterminador, você sabe que eu não sou esse tipo de pessoa, minha vontade é de largar essa vida, mas não tenho apoio de ninguém”. E quando vi nos jornais aquele homem sendo carregado morto a minha alma se entristeceu, porque ele queria mudar, mas estava cercado por uma sociedade discriminatória.

Então o que a sociedade deveria saber sobre os bandidos para mudar essa percepção?
A minha fala para a sociedade é que dê uma oportunidade a uma pessoa dessa. Porque a maior parte deles está disposta a mudar, mas não veem meios para isso. O AfroReggae dá uma oportunidade para essas pessoas, as emprega, e temos tido um êxito muito grande. Uma pessoa que trabalha nesse programa, por exemplo, o Schneider, já chegou a comandar seis favelas do Rio de Janeiro, ganhava um salário altíssimo na vida do crime e hoje ele sustenta sua família com R$ 2 mil que ganha do AfroReggae. E está muito mais feliz. É um processo que temos, plantamos e vamos regando.

O trabalho que você faz não deixa o crime enciumado? Porque, se você fica tentando tirar pessoas do lado deles, é como se estivesse enfraquecendo o negócio.
Pelo contrário, eles até incentivam as pessoas a saírem. Até dizem: “Vai com Deus, o próximo serei eu. Vai lá, não esquece a gente, pode voltar pra comunidade quando quiser”. Eles sabem que o negócio não é bom.

A imagem da maior parte da sociedade é que o traficante gosta do que faz.
As pessoas pensam assim porque é isso que elas veem. Dá no noticiário que tal pessoa estuprou, a outra matou 20 pessoas… E algumas vezes aquela pessoa está ali como bucha [na linguagem do crime uma pessoa que foi colocada para pagar o crime de outra]. Houve um erro na vida de uma pessoa e nós temos que riscar ela da sociedade? Muitos fatos não acontecem próximos de nós, e temos facilidade de julgar, de condenar. Se um dia um filho nosso comete um delito, por mais que seja errado, ninguém quer ver o filho arrancado da sociedade. E muitos criminosos, embora estejam naquela vida, armados, com cordão de ouro, assaltando, eles temem a Deus.

Mas que diferença faz temer a Deus se o cara continua matando ou roubando?
Mas não é da maneira como era antes. Quando pensam em tirar a vida, eles pensam duas vezes. Eles matam menos, e só alguns crimes que eles consideram imperdoáveis – o caguete, o estuprador. Mas é uma mudança gradual. O trabalho dos evangélicos mostra que essa força que faz uma pessoa estuprar, que faz uma pessoa caguetar, não são naturais do homem. Ou seja, está possuída de espírito maligno para tomar essas atitudes.

Então algumas pessoas são perdoadas pelo crime porque os traficantes entendem que elas estão possuídas?
Aconteceu uma vez de uma pessoa entrar numa comunidade batendo no peito dizendo que era de uma facção rival. O bando que estava em volta do chefe dizia: “Vamos matar”, e o próprio dono da comunidade dizia: “Rapá, vocês não tão vendo que essa pessoa, pra tomar uma atitude dessas, está mal acompanhada, os demônios estão naquela pessoa? Deixa pra lá”. Ou seja, os próprios bandidos têm essa visão. E Deus vai trabalhando na vida dessas pessoas através das visitas que nós fazemos.

E você sente que conseguiu reduzir o número de execuções feitas pelo tráfico com a evangelização?
Muito. O trabalho que os evangélicos têm feito colocou lá embaixo o número de pessoas sendo executadas. E muitas vezes um que estava amarrado para ser morto e foi liberado pelo traficante começa a fazer o trabalho de evangelização junto de nós. Vira pastor. E depois volta à comunidade para servir de exemplo. Aí os traficantes veem que tem jeito, que não precisavam ter matado. Aí eles próprios começam a acreditar que podem mudar também. Já houve caso de um bandido que estava prestes a matar uma
pessoa se lembrar de mim, e na mesma hora desistir de matar. Ele me disse isso, disse que ouvia minha voz dizendo “não mata, não mata”.

E quem aceitou Jesus e continua no tráfico está salvo aos olhos de Deus?
Não, se ele continua no crime ainda não aceitou Jesus. A pessoa que aceita Jesus mesmo larga o tráfico.
Mas você diz isso aos bandidos? O que falta para eles largarem as armas e o crime? Se a gente conseguisse criar uma lei que anistiasse as pessoas que quisessem largar mesmo… Que eles pudessem voltar à sociedade sem serem trancados. Vocês viram muitas pessoas armadas ali, mas com armas que há meses não foram acionadas. Por quê? Eles estão armados para se proteger, não estão usando aquelas armas pra cometer um delito. O problema é falta de oportunidade, tem gente ali que largou o crime, foi pra outro Estado, tentou trabalhar, mas tem antecedente, é procurado… aí teve que voltar pro crime. E está no tráfico? Está, mas não gosta. Mas se sair pode morrer, passar fome, ser preso…

Parece contraditório o tráfico incentivar a saída de pessoas do crime, quando aceita um menino de 10 anos que quer entrar para o crime.
É difícil falar isso, porque tem determinados lugares que eles não aceitam. Às vezes não é o tráfico que aceita, é a insistência daquele menor para estar ali, até pelo consumo hoje do crack. Com o consumo do crack hoje você vê crianças de 8, 9, 10 anos mergulhando no vício, e a opção deles é trabalhar para manter o vício. Vai esperar capinar um terreno, lavar um carro pra poder ter aquele dinheiro? A vontade dele é muito maior, porque o desejo dele de consumir a droga é muito mais intenso.

Ora por mim, pastor

No dia seguinte ao da primeira incursão nas comunidades dominadas pelo tráfico, combinamos de encontrar o pastor Rogério na avenida Brasil, em uma zona periférica do Rio, também sob a batuta de facções do crime organizado. Um cabreiro taxista nos leva e estranha ainda mais quando, ao telefone, Rogério nos avisa que seu carro quebrou na avenida. Deveríamos pegá-lo em outro canto. O taxista só se tranquiliza quando vê que nosso carona era um pastor, devidamente engravatado e de Bíblia em punho.

“Você vira aqui”, vai indicando Rogério, que logo pede: “O senhor se incomoda de entrar na comunidade?”. Era uma área disputada entre três facções. Nossa intenção era acompanhar um pouco mais da rotina de Rogério e ainda fazer algumas fotos com os traficantes. “Não tem problema”, tenta tranquilizar o pastor, “eu conheço o pessoal.” O taxista hesita e confessa: “Se o senhor não se importar, prefiro deixar vocês aqui. Vou ser honesto com vocês. Sou polícia militar”. E, para piorar, nosso chofer, além da patente, tinha uma arma no carro. Até Rogério concordou, melhor não arriscar. Meia-volta e rumamos para a casa do pastor, na baixada fluminense.

O PM taxista logo reconhece o passageiro, “você não é aquele pastor que vai aos presídios?”, e escuta interessado as histórias do passado de pecador de Rogério. Seu uso de cocaína, suas overdoses, suas dúzias de homens que salvou da execução dentro de favelas. Ao nos deixar no condomínio de casas de classe média na baixada fluminense, faz um pedido: “Ora por mim, pastor”.

Nosso pastor vive em uma vizinhança composta basicamente de policiais. Seu vizinho de muro é um delegado da polícia civil e até na sua área ele convive com armas à mostra. “Tem coronel que vai comprar pão com revólver na cintura. Aqui não tem assalto de jeito nenhum.” É uma rua tranquila e uma confortável casa onde vive com a mulher e a filha. Toda a renda do casal vem do AfroReggae. Sua esposa também trabalha para a ONG e ele mesmo não ganha soldo algum da Assembleia de Deus, onde prega aos domingos. Aliás, hoje, dia da entrevista que você agora lê, é domingo. E logo mais vamos zarpar para ver Rogério falando no púlpito. Mas, antes, queremos saber quem foi o rapaz que virou pastor.

Como foi sua adolescência?
Sempre morei aqui na Vila Norma, uma região de classe baixa. Meus pensamentos eram sempre de ter o melhor para mim, ter meu trabalho, comprar minha roupa, mesmo vendo a marginalidade.

Você já tinha contato com o crime?
As pessoas que moram na comunidade, mesmo sendo trabalhadoras, conhecem os traficantes. São pessoas nascidas e criadas juntas, mas por falta de opção algumas acabam ingressando na criminalidade. Mas pode ser um vizinho, um parente, entendeu? Eram pessoas que frequentavam os mesmos bailes que eu.

Tinha alguma profissão que você sonhava em seguir?
Sempre fui apaixonado por carros. Queria trabalhar com isso. E sempre gostei também do surf, teve épocas que eu ia pra praia pegar onda na Barra da Tijuca.

E você era bom?
Eu não era muito bom, não. Era mais de botar a prancha enterrada na areia pra mostrar pras pessoas. Mas eu gostava, frequentava os campeonatos no Recreio, no Pepê. Eu queria estar perto dos surfistas internacionais como Derek Ho. Também gostava muito de ir em festivais de rock.

O que você ouvia?
U2, The Smiths, Midnight Oil, Morrissey. Eu fazia coleção de discos, tinha mais de 70! Eu ia muito em discoteca, em shows do Plebe Rude, Capital Inicial, Legião Urbana… Era roqueiro.

Você tinha uma relação boa com seus pais?
Embora fôssemos pobres, eu tinha uma relação muito boa com eles. Mas meu pai teve uma vida de muito sofrimento, sempre dentro de hospital se recuperando de problemas gravíssimos. Certa vez ele puxou a gasolina com uma mangueira do tanque de um carro, acabou caindo na boca dele, foi pro hospital, teve uma parada cardíaca. O falecimento do meu pai desestruturou toda a família.

Aí seus problemas começaram?
Foi. Logo quando minha mãe decidiu arrumar uma outra pessoa e eu não aceitei. E ela falou: “Ou você aceita ou procura um outro lugar pra morar”. Decidi morar com um primo meu. E eu não conseguia mais ter ânimo para trabalhar, perdi meu emprego de office boy e me deu uma depressão muito grande. Eu nunca tinha experimentado nada. E me entreguei às bebidas com uns 18 anos. Comecei a beber, fumar cigarro. Depois maconha, cocaína…

E como você ganhava dinheiro?
Fazendo um adianto pra um traficante, usava minha casa para embalar as drogas. Muitas vezes quando a pessoa é viciada ela tenta se aproximar do traficante, porque ela não consegue manter o vício. E sendo amiga do traficante ela vai ter uma quantidade de cocaína que o traficante vai lhe dar.

Você era viciado, de não passar sem?
Sim. A ponto de dizer que eu ia morrer cheirando cocaína. E quase que eu morri. As duas overdoses que eu tive foram dentro de casa. Antes de misturar a cocaína com pó Royal pra vender, eu cheirava pura. Entrava em paranoias de achar que a polícia estava sempre prestes a me pegar. Até que um dia eu fui preso mesmo.

Como foi essa prisão?
Estava num baile com o gerente da boca de fumo. Tínhamos entrado com bastante cocaína e toda hora a gente ia pro banheiro pra cheirar. Chamamos a atenção do segurança, até que ele enquadrou a gente, chamou a polícia e já saímos algemados de dentro da discoteca. Como a gente tinha 25 g, fomos autuados por tráfico.

E você ficou preso?
Os caras da DP queriam dinheiro pra me liberar. Como eu não tinha, quem financiou foi o tráfico e fizemos o acordo com a polícia. É aquela situação… a pessoa que não tem a quem recorrer recorre a quem tem condições de ajudar. E quando eu recorri ao tráfico foi porque eu não tinha como me soltar.

E teve que trabalhar com eles para pagar a dívida?
Tive. Foi quando eu comecei a endolar a cocaína. E também era motorista do tráfico. Quando uma pessoa quisesse sair pra fazer um assalto eu tinha que estar à disposição. Mas eu não durei muito. Logo desisti.

E como você largou o tráfico?
Eu sempre falo que o que mais tira as pessoas da vida do crime é o evangelho. E o que me trouxe essa mensagem foi ver o gerente da favela, um cara poderoso, meu chefe, que tinha marcas de tiro no corpo, me dizer: “Rogério, a partir de hoje eu não vou ficar mais na boca. Eu vou para uma igreja. Vou entregar minha vida a Deus”. E aquilo me chamou muito a atenção.

Foi o exemplo dele que te motivou a buscar a igreja?
Foi. Porque, se Jesus liberou um grande traficante, eu que era iniciante seria mais fácil. Já me vi enquadrado para ser morto e não me mataram. Teve também uma troca de tiros em que um inimigo mirou para me acertar e na hora passou uma pessoa na frente e tomou o tiro na cabeça. Aquele tiro era pra acertar em mim e pegou no morador que passou correndo na minha frente e caiu morto. E era um trabalhador, nem fazia o que eu fazia. Ali eu vi que Deus colocou a mão sobre mim, porque era pra eu ter morrido.

É possível a pessoa se transformar dessa maneira sem o evangelho?
É possível, mas há possibilidade de essa pessoa voltar a errar novamente.

Mas com o evangelho também há essa possibilidade…
Também. É uma luta. Tem uma passagem que diz que o diabo não se dá por derrotado.

É possível chegar ao paraíso por outras religiões? Ou sem nenhuma?
Rapaz, muitas pessoas dizem que todos os caminhos levam a Deus. Pelo meu pensamento, pelo conhecimento que tenho da Bíblia, Jesus diz assim: “Eu sou o caminho e ninguém vai ao Pai a não ser por mim”. Aí cada um que examine a Bíblia. O interior de cada um só quem conhece é Deus.

Se Deus é tão bom e poderoso, por que o mal prevalece tanto?
Prevalece porque Deus permite. Até quando o mal atinge uma pessoa é porque Deus quer mostrar o poder dele. A gente estava em uma guerra, mas uma guerra espiritual, uma guerra do bem contra o mal. Eu vou para aqueles lugares perigosos para fazer um trabalho que tem que ser feito. Mas está chegando o dia de Jesus voltar. Ele disse que voltaria quando tivesse terremoto, maremoto, pragas. Hoje isso está acontecendo. Se você reparar, o tempo está sendo abreviado, tudo passa muito mais rápido. Isso são sinais…

Então a volta de Jesus está para acontecer em pouco tempo?
Em pouco tempo. Olha aquele vulcão na Islândia, as chuvas no Rio de Janeiro, são muitos sinais. Deus está mostrando os sinais para que as pessoas despertem.

Falando em apocalipse, você acompanha a relação do governo com as comunidades carentes há mais de 20 anos. Vê alguma melhora nesse processo ao longo do tempo?
Na minha visão tem melhorado um pouco, tem novos programas sociais. É um problema que vem de muitos anos, não é um erro só nem há uma solução simples. Pra consertar isso o governo acaba agradando um lado, mas desagradando outros.

O que você pensa do governo Lula?
O ser humano vai muito pelo que ele ouve. Eu tinha uma grande má impressão do Lula. E tem momentos em que a gente se decepciona com os nossos pensamentos, e eu me decepcionei com os meus. Ele tem mostrado um governo muito bom com esses projetos no Rio de Janeiro, o PAC. O que ele fez em pouco tempo muitas pessoas não fizeram. É um governo que se destacou, até porque ele veio da miséria. No discurso de posse dele eu me emocionei. Porque na hora que ele chegou naquela posição ele deu toda a honra a Deus.

O que você acha dessa presença cada vez maior dos evangélicos na política?
Não me pergunta isso não, rapaz [sorri].

E o que deveria mudar dentro da polícia? Se fosse secretário de segurança, o que faria?
Isso aí é difícil de responder, entende? Muito delicado. Mas nós temos hoje um projeto do AfroReggae em parceria com a polícia civil que se chama Papo de Responsa. O coordenador desse projeto é uma pessoa que é da polícia civil mostrando a forma correta que a polícia tem que agir. É um grupo de policias civis em parceria com um grupo de ex-traficantes e ex-presidiários.

Muita gente diz que a melhor maneira de combater o tráfico seria legalizar as drogas. O que você acha disso?
É uma pergunta difícil, porque eu tenho uma resposta pro lado espiritual e uma pro lado social. Pelo lado espiritual é difícil liberar as drogas. Mas também tem o lado social, em que muitas autoridades estão chegando à conclusão de que seria boa a legalização. Numa entrevista assim eu fui pego de surpresa… É complicado falar para liberar, mas, se fizerem isso, o governo vai ter que tentar desincentivar as pessoas igual faz com o cigarro. E a renda da venda dessas drogas legalizadas tem que ser toda distribuída na área de recuperação, educação. Vai ter que investir mais nas igrejas evangélicas também, dar um apoio maior pra se fazer um trabalho de resgate das pessoas desse caminho.

E a polícia, pela sua relação próxima com o tráfico, não te vê como suspeito ou inimigo?
Não mesmo. Mas já aconteceu de eu estar em uma igreja e os policiais entrarem, me pegarem lá dentro e me baterem muito. Queriam que eu dissesse onde estava um traficante. Logo depois eu tive o apoio das autoridades, que viram que aqueles policiais estavam errados, disseram que eu poderia depor contra eles. Mas naquele momento eu preferi deixar de lado, acreditei na justiça de Deus. E aconteceu que aquele policial que invadiu a igreja, me pegou e me bateu hoje é meu amigo. É um evangélico.

Como é sua rotina de trabalho?
Eu costumo acordar por volta das 6h30, saio para o complexo penitenciário de Bangu e fico até umas 16h30. Na saída sempre tem o telefonema de alguma pessoa pedindo ajuda. Uma mãe que não consegue resgatar o filho do vício das drogas, pessoas amarradas para morrer, e isso vai até as três da manhã. Às vezes estou deitado com minha família, acordo com o telefonema avisando que tem gente pra ser executada. E eu saio pra resgatar.

O dízimo é parte importante na demonstração de fé da pessoa?
É uma das partes fundamentais, porque é bíblico pegar a décima parte do seu salário e dar para Deus. A igreja hoje é uma obra social muito grande. Porque uma pessoa, fiel ou não, procura a igreja para ser ajudada. E a igreja sempre dá uma cesta básica a uma pessoa, cuida de um órfão, de uma viúva… Jesus liberta a pessoa do cigarro, liberta da bebida, da maconha, da cocaína, da boate. Olha quanto dinheiro a pessoa joga fora. Se ela observar, ela dá 70% pro diabo. E por que ela não pode pegar 10% e investir no reino de Deus?

Igrejas evangélicas sofreram muitos escândalos envolvendo pastores e dinheiro. Você sofre preconceito por ser pastor?
Na verdade eu não sinto isso das pessoas porque não é de agora que elas me conhecem, é um trabalho de muitos anos. Mas todos sabem dos escândalos da igreja evangélica. Mas nós sabemos discernir onde está o bem, onde está o mal, mesmo dentro das igrejas Eu sei onde está o bem e onde está o mal.

Como você se prepara para ser um guia espiritual?
Tem um curso de teologia, tem cursos que igrejas oferecem, mas a maior orientação que eu recebi foi na prática, foi convivendo nas comunidades. Eu comecei dentro das comunidades por ser de uma, por eu ter saído daquela vida errada. Foi aí que eu comecei a visitar meus amigos que ainda se encontravam nas drogas, visitar meus amigos que estavam presos. E aquelas visitas se tornaram cultos dentro das delegacias, nas favelas. E assim fui me aperfeiçoando. Pra fazer um trabalho desses nas comunidades
é preciso ter um revestimento.

Vimos você orando por bandidos. E hoje um policial pediu sua bênção. E como é isso de orar para os dois lados de uma só guerra?
É uma guerra, e eu tenho que estar no meio disso como uma luz. O traficante tem o lado dele, e a polícia o dela. Eu não tenho lado. E eu sou respeitado pelo que eu faço, porque eles sabem que eu não levo perigo, sabem que não estou ali para levar informação pra ninguém Hoje entro em qualquer presídio, em qualquer facção, do Comando, do Terceiro, do ADA. E tenho um apoio porque já foi mais do que mostrado para eles a pureza do meu trabalho.

Pega Jesus!

Apressados, deixamos a baixada fluminense com a família de Rogério para o culto das 18h. O caminho é longo e o assunto segue na boca de nosso motorista contratado. “Em São Paulo não tem tanta violência porque a Rota matava”, diz o homem ao volante. “O pastor vai me desculpar, mas pra mim tinha que passar fogo em muito bandido. E em políticos também.” Rogério discorda, mas não discute. Apenas segue seus causos de evangelização em escabrosas situações. Como no dia em que ficou com sua mulher e filha
entrincheirados na favela enquanto o Bope mandava bala de dentro do caveirão. “Eu me lembro, papai!”, interrompe a filhinha de 4 anos. “Nunca mais quero passar por isso”, conclui a criança puxando risos e choque nos demais.

O carro estaciona em uma favela no pé do Corcovado, onde um Cristo Redentor coberto por tapumes era reformado. Vamos a uma igreja simples, e o culto já está em andamento. Música gospel retumba ao vivo. Uma maioria de mulheres se espalha pelos bancos. E as falas dos pastores se intercalam com as canções. Até que pastor Rogério é chamado. E viramos nós, os repórteres, o tema do sermão. As testemunhas de suas andanças e conquistas. De como vimos – e vimos mesmo – Rogério aplacando com uma oração os demônios de um crackeiro em surto paranoico no meio da favela. De como vimos o evangelho – e vimos mesmo – provocando hesitação em bandidos menos, mas ainda, violentos. E de como viemos – e viemos mesmo – de São Paulo para contar aos outros de seu importante trabalho.

Sua fala sem plurais segue alta, e com a pompa e a estranha eloquência dos pastores. Mas com uma curiosa e nada usual conclusão, antes de jogar sua libertadora oração sobre as cabeças de fiéis ajoelhados defronte ao palco – repórteres inclusos. Assim falou o pastor Rogério: “É preciso estar pronto! Porque Jesus vai voltar. E Jesus vai voltar como um ladrão… ele chega, mas ninguém sabe a hora”.

fonte: Trip
dica do Chicco Sal via Pavablog