quinta-feira, 23 de agosto de 2012

O Rivotril e a oração

Recentemente a revista “Época” publicou uma matéria sobre o uso do Rivotril, uma droga contra a ansiedade, de baixo custo, que tornou-se o segundo remédio mais vendido no Brasil, atrás apenas do anticoncepcional Microvlar. Segundo a revista, apesar de a droga ser antiga e estar há mais de 35 anos no mercado, nos últimos cinco anos teve uma escalada impressionante de vendas, batendo inclusive analgésicos tradicionais, como Novalgina e Tylenol. Este dado revela um cenário social preocupante sob vários aspectos. Além dos problemas mencionados na reportagem -- que vão desde o aumento dos transtornos de ansiedade e depressão na sociedade, até os milhões de dólares gastos em publicidade pela indústria farmacêutica, passando pelos atalhos usados por profissionais de saúde que não se preocupam em analisar as causas da ansiedade --, temos um quadro que desafia a fé e o chamado de Cristo. Vivemos um tempo de muita violência, pressa, competição e medo. As inúmeras expectativas sociais, afetivas e profissionais geram inquietações e frustrações. As mudanças em diversos aspectos da vida acontecem numa velocidade enorme e tornam cada vez mais difícil para a pessoa discernir o que realmente importa e o que é possível. Os anseios internos e externos nos consomem. Amigos que requerem nosso tempo e atenção, projetos não concluídos e outros na fila à espera de tempo para serem considerados. O lar deixou de ser um lugar tranquilo. As várias televisões ligadas, a internet e os celulares transformaram o ambiente doméstico numa extensão da agitação que vivemos todo dia. Cada nova experiência nos traz exigências cada vez maiores. Nos anos dedicados ao seu ministério público, Jesus trabalhou intensamente, enfrentou situações difíceis, violência e um complexo quadro social, político e econômico. E declarou em sua oração ao final do ministério: “Eu te glorifiquei na terra consumando a obra que me confiaste” (Jo 17.4). Compreender o significado desta declaração nos ajudará a lidar melhor com a ansiedade. O reverendo Peter T. Forsyth disse em certa ocasião: “O pior dos pecados é a falta de oração”. Por meio da oração nós permanecemos com os olhos e a mente em Deus. Sua ausência intensifica nosso orgulho, e achamos que é possível viver sem Deus. A prática da oração nos preserva numa vida centrada na glória, no reino e na vontade de Deus. Foi assim que Jesus nos ensinou a orar. Para muitos as tensões e ansiedades do trabalho vêm de chefes e diretores neuróticos. As incertezas do futuro, o ritmo acelerado das mudanças, a superficialidade dos relacionamentos, as exigências públicas e privadas cada vez maiores, são geradores de muita ansiedade. Porém, a oração nos ajuda a manter a vida focada em Deus, e nele aprendemos a descansar e reconhecer o que realmente importa. O mundo de Jesus não era diferente; ainda assim, o vemos orando, reconhecendo que havia completado a obra que lhe fora confiada. É claro que, mesmo tendo curado muitos enfermos, outros tantos permaneceram doentes. Devolveu a dignidade a algumas prostitutas, coletores de impostos e endemoninhados, mas muitos continuaram na vil escravidão. Porém, a certeza de ter cumprido a tarefa que o Pai lhe confiara veio do lugar que a oração ocupou em sua vida. Não podemos mudar a paisagem externa (agitação, competição, violência, consumo), mas podemos mudar a paisagem interna (confiança, entrega, descanso, paz). Uma vez que a paisagem interna é transformada, podemos entrar no mundo agitado da paisagem externa e contribuir para sua transformação. Um momento de silêncio, meditação nas Escrituras e oração no início de cada dia muda radicalmente a paisagem interna e nos ajuda a olhar com mais serenidade a paisagem externa. Além desses minutos diários, precisamos nos recolher, pelo menos uma vez por semana, para um inventário pessoal, para ver se temos nos ocupado mais com Deus e sua vontade ou com a tirania das demandas sociais. A oração é o antídoto divino para a ansiedade. • Ricardo Barbosa de Sousa é pastor da Igreja Presbiteriana do Planalto e coordenador do Centro Cristão de Estudos, em Brasília. É autor de “Janelas para a Vida” e “O Caminho do Coração”.

terça-feira, 12 de abril de 2011

UBUNTU,tio


A Jornalista e filósofa Lia Diskin no Festival Mundial da Paz em Floripa (2006) nos presenteou com um caso de uma tribo na África chamada Ubuntu. Ela contou que um antropólogo estava estudando os usos e costumes da tribo e, quando terminou seu trabalho, teve que esperar pelo transporte que o levaria até o aeroporto de volta pra casa. Sobrava muito tempo, mas ele não queria catequizar os membros da tribo então, propôs uma brincadeira pras crianças que achou ser inofensiva.

Comprou uma porção de doces e guloseimas na cidade, botou tudo num cesto bem bonito com laço de fita e tudo e colocou debaixo de uma árvore. Aí ele chamou as crianças e combinou que quando ele dissesse "já!", elas deveriam sair correndo até o cesto e a que chegasse primeiro ganharia todos os doces que estavam lá dentro.

As crianças se posicionaram na linha demarcatória que ele desenhou no chão e esperaram pelo sinal combinado. Quando ele disse "Já!" instantaneamente todas as crianças se deram as mãos e saíram correndo em direção à árvore com o cesto. Chegando lá, começaram a distribuir os doces entre si e a comerem felizes.

O antropólogo foi ao encontro delas e perguntou porque elas tinham ido todas juntas se uma só poderia ficar com tudo que havia no cesto e, assim, ganhar muito mais doces. Elas simplesmente responderam: "Ubuntu, tio. Como uma de nós poderia ficar feliz se todas as outras estivessem tristes?"

Ele ficou de cara.Meses e meses trabalhando nisso, estudando a tribo e ainda não havia compreendido, de verdade, a essência daquele povo. Ou jamais teria proposto uma competição, certo?

Ubuntu significa: Sou quem sou, por quem somos todos nós.

Atente para o detalhe: por quem SOMOS, não pelo que temos...

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Blindado por Deus


No fogo cruzado da guerra travada entre polícia e tráfico de drogas, um homem circula imune. Respeitado por bandidos e políticos, por comunidades carentes e pelo Bope, o pastor Rogério Menezes conquistou esse privilégio graças à sua neutralidade e sua sincera missão: salvar vidas e resgatar almas. Conheça o homem que, há 17 anos, pacifica o Rio de Janeiro usando o verbo como arma

Bruno Torturra Nogueira

Foi uma revelação. Não uma espiritual, ao contrário. Uma experiência de um extremo realismo, mas, qual uma epifania, capaz de transformar qualquer um que a viva. De mãos dadas, formamos uma roda de 13 homens. Uma mão ligada a um rapaz de 20 anos, líder do tráfico de oito favelas cariocas. Outra ligada ao pastor Rogério, que conduz a oração. “Ó, Pai celestial, abençoa esses homens, Pai! Protege esses homens, Pai.” Estamos na calçada em frente a um terreno baldio, dentro de uma favela na zona norte carioca. É começo de madrugada. Três homens estão de escolta, seguram fuzis AR-15, um deles uma metralhadora. E todos vestem cintos que sustentam pistolas e granadas. “Pai, afaste o mal daqui, tira todo pensamento maligno. Proteja a vida deles, ó, Pai!” Temos os olhos fechados e oramos com a cabeça baixa. Os traficantes rezam com granadas ainda na cintura, mas seus fuzis e escopetas estão escorados no muro atrás de nós. Seus walkie-talkies seguem nervosos em chiados: “O blindado tá na ponte, câmbio”.

O aviso era claro. O caveirão do Bope estava pronto para invadir a favela. E quando chega o caveirão, irmão, não tem conversa. É bala. “Ó, Pai celestial”, segue o pastor Rogério, “desvie as balas que vierem na direção desses homens. Permita que eles vivam mais e que deixem esse caminho e encontrem a salvação em Teu filho amado Jesus!” A voz do pastor precisava soar bem alto para ser escutada enquanto carros passavam em alta velocidade e rapazes com meio corpo para fora da janela gritavam a letra do funk pancadão que estourava no toca-fita. Era sábado, dia de baile. Dia em que tráfico, polícia e população da favela estão em alerta e excitação máximas.

“Palmas pra Jesus”, Rogério encerra a oração. Todos aplaudem, os homens do tráfico penduram em si o arsenal e saem em dois automóveis para esperar o Bope em melhor posição. Apenas um fica, dizendo: “Tranquilo… o caveirão ainda tá longe”. E pede uma bênção exclusiva ao pastor. Enquanto o rapaz gaba-se de ser piedoso, apesar de vez ou outra picotar inimigos com uma espada, explica por que está sem medo de morrer. “Se eu for passado tá tranquilo. Vou com Jesus amarradão”, resume ao pastor que, compassivo, escuta a tudo com olhar neutro. “Você ainda vai sair daqui comigo para a igreja. Vai ser pastor”, profetiza um dos maiores, e invisíveis, pacificadores da guerra travada no Rio de Janeiro.

Há 17 anos Rogério Menezes trabalha assim, entrincheirado nos piores núcleos da violência e do crime organizado, tentando pacificar e evangelizar criminosos na ativa ou em presídios. E, como a reportagem pôde testemunhar, criou uma reputação e um respeito tão grandes dentro das comunidades e facções que ele consegue entrar em qualquer favela, conversar com qualquer bandido, qualquer chefe de morro. E pode, sem nenhum constrangimento, levar consigo dois repórteres a tiracolo. Em uma noite andamos na perua de um procuradíssimo assaltante que, ostentando ouro e histórias tenebrosas, atende ao pedido do pastor Rogério para nos falar sobre como funciona seu negócio. Demos plantão em frente a uma boca de fumo onde, com frequência, soldados do tráfico armados com calibrosas armas desciam das motos, despiam-se de armas e pediam cabisbaixos uma oração a Rogério. Cruzamos uma deserta fronteira entre duas facções rivais do tráfico e fomos recebidos com igual disposição.

Tamanha credibilidade de Rogério vem de duas fontes: sua neutralidade ao caminhar na inflamada ponte entre polícia, tráfico, milícias e facções; e seu passado. Ele também veio de uma vida criminal. E sabe, de experiência própria, quais são os demônios no coração de um homem à margem da lei e da sociedade. Ele é fruto e catalisador de uma conhecida realidade, mas pouco testemunhada pela mídia: o avanço das religiões evangélicas dentro das comunidades carentes. E, especialmente, dentro do tráfico de drogas. “Todo traficante acredita muito em Jesus”, é o que escutamos da boca de Rogério e de diferentes traficantes.

Por conta de seu acesso, seu carisma e seus promissores resultados, o AfroReggae (influente ONG carioca que cria pontes entre as comunidades carentes, Estado e empresas como forma de desenvolvimento social) contratou o pastor Rogério para suas fileiras. “Ele se arrisca de uma maneira muito intensa, faz algo que nunca vi”, resume José Júnior, criador da ONG. “Como mediador e salvador de vidas ele é imbatível. Se mete em confusões que ninguém se meteria. E não julga quem está salvando, não importa quem é… o negócio é salvar vidas. Por isso os bandidos o respeitam. Hoje ele mistura religiosidade a projetos sociais”, completa. Rogério coordena um programa em presídios para a reinclusão de ex-detentos no mercado de trabalho. E, claro, usa a evangelização como a principal ferramenta de transformação. De noite, no entanto, faz o trabalho “voluntário” de visitar as comunidades onde é chamado para dar bênçãos e salvar vidas amarradas para morrer. É o caso de Emerson.

Há três anos, Rogério recebeu um telefonema avisando que um moleque estava para ser executado. Entrou em seu Uno e se apressou para chegar ao líder do morro. Emerson estava um trapo humano. A cabeça aberta por pancadas de cano. Tiros nas mãos. A cara enfiada em fezes de porco. O estômago cheio de gasolina que foi obrigado a beber. Em minutos seria queimado vivo. Clamando por piedade e citando a Bíblia, Rogério levou Emerson para um hospital – três dias em coma. E de lá para a igreja.

Renascido em Cristo e agora evangelizador, Emerson dá bênçãos junto com nosso pastor. E tornou-se amigo dos traficantes que o torturaram. Hoje ajuda a reduzir o número de execuções dentro do tráfico de drogas usando a Palavra como amaciante de corações implacáveis. É por essa estranha e bem-sucedida relação do crime organizado com o evangelho que começamos nossa entrevista.


Por que você acha que a igreja evangélica conseguiu crescer tanto dentro do tráfico?
Porque o evangelho é demonstração de virtude e poder. Pra chegar até aqueles homens armados de fuzis, pistolas, granadas, fortemente armados, não dá para chegar com blablablá. Mas, se você chega com poder, faz uma oração por eles, alguns caem no chão endemoniados. Aí as pessoas te dão credibilidade. E vão se convertendo. É por isso que hoje você quase não acha mais terreiro de macumba na favela. O próprio Bem-te-vi da Rocinha [que foi chefe do tráfico na favela] sentava-se comigo e chorava. Ele falava: “Pastor, a sociedade me marginaliza, fala que eu sou um exterminador, você sabe que eu não sou esse tipo de pessoa, minha vontade é de largar essa vida, mas não tenho apoio de ninguém”. E quando vi nos jornais aquele homem sendo carregado morto a minha alma se entristeceu, porque ele queria mudar, mas estava cercado por uma sociedade discriminatória.

Então o que a sociedade deveria saber sobre os bandidos para mudar essa percepção?
A minha fala para a sociedade é que dê uma oportunidade a uma pessoa dessa. Porque a maior parte deles está disposta a mudar, mas não veem meios para isso. O AfroReggae dá uma oportunidade para essas pessoas, as emprega, e temos tido um êxito muito grande. Uma pessoa que trabalha nesse programa, por exemplo, o Schneider, já chegou a comandar seis favelas do Rio de Janeiro, ganhava um salário altíssimo na vida do crime e hoje ele sustenta sua família com R$ 2 mil que ganha do AfroReggae. E está muito mais feliz. É um processo que temos, plantamos e vamos regando.

O trabalho que você faz não deixa o crime enciumado? Porque, se você fica tentando tirar pessoas do lado deles, é como se estivesse enfraquecendo o negócio.
Pelo contrário, eles até incentivam as pessoas a saírem. Até dizem: “Vai com Deus, o próximo serei eu. Vai lá, não esquece a gente, pode voltar pra comunidade quando quiser”. Eles sabem que o negócio não é bom.

A imagem da maior parte da sociedade é que o traficante gosta do que faz.
As pessoas pensam assim porque é isso que elas veem. Dá no noticiário que tal pessoa estuprou, a outra matou 20 pessoas… E algumas vezes aquela pessoa está ali como bucha [na linguagem do crime uma pessoa que foi colocada para pagar o crime de outra]. Houve um erro na vida de uma pessoa e nós temos que riscar ela da sociedade? Muitos fatos não acontecem próximos de nós, e temos facilidade de julgar, de condenar. Se um dia um filho nosso comete um delito, por mais que seja errado, ninguém quer ver o filho arrancado da sociedade. E muitos criminosos, embora estejam naquela vida, armados, com cordão de ouro, assaltando, eles temem a Deus.

Mas que diferença faz temer a Deus se o cara continua matando ou roubando?
Mas não é da maneira como era antes. Quando pensam em tirar a vida, eles pensam duas vezes. Eles matam menos, e só alguns crimes que eles consideram imperdoáveis – o caguete, o estuprador. Mas é uma mudança gradual. O trabalho dos evangélicos mostra que essa força que faz uma pessoa estuprar, que faz uma pessoa caguetar, não são naturais do homem. Ou seja, está possuída de espírito maligno para tomar essas atitudes.

Então algumas pessoas são perdoadas pelo crime porque os traficantes entendem que elas estão possuídas?
Aconteceu uma vez de uma pessoa entrar numa comunidade batendo no peito dizendo que era de uma facção rival. O bando que estava em volta do chefe dizia: “Vamos matar”, e o próprio dono da comunidade dizia: “Rapá, vocês não tão vendo que essa pessoa, pra tomar uma atitude dessas, está mal acompanhada, os demônios estão naquela pessoa? Deixa pra lá”. Ou seja, os próprios bandidos têm essa visão. E Deus vai trabalhando na vida dessas pessoas através das visitas que nós fazemos.

E você sente que conseguiu reduzir o número de execuções feitas pelo tráfico com a evangelização?
Muito. O trabalho que os evangélicos têm feito colocou lá embaixo o número de pessoas sendo executadas. E muitas vezes um que estava amarrado para ser morto e foi liberado pelo traficante começa a fazer o trabalho de evangelização junto de nós. Vira pastor. E depois volta à comunidade para servir de exemplo. Aí os traficantes veem que tem jeito, que não precisavam ter matado. Aí eles próprios começam a acreditar que podem mudar também. Já houve caso de um bandido que estava prestes a matar uma
pessoa se lembrar de mim, e na mesma hora desistir de matar. Ele me disse isso, disse que ouvia minha voz dizendo “não mata, não mata”.

E quem aceitou Jesus e continua no tráfico está salvo aos olhos de Deus?
Não, se ele continua no crime ainda não aceitou Jesus. A pessoa que aceita Jesus mesmo larga o tráfico.
Mas você diz isso aos bandidos? O que falta para eles largarem as armas e o crime? Se a gente conseguisse criar uma lei que anistiasse as pessoas que quisessem largar mesmo… Que eles pudessem voltar à sociedade sem serem trancados. Vocês viram muitas pessoas armadas ali, mas com armas que há meses não foram acionadas. Por quê? Eles estão armados para se proteger, não estão usando aquelas armas pra cometer um delito. O problema é falta de oportunidade, tem gente ali que largou o crime, foi pra outro Estado, tentou trabalhar, mas tem antecedente, é procurado… aí teve que voltar pro crime. E está no tráfico? Está, mas não gosta. Mas se sair pode morrer, passar fome, ser preso…

Parece contraditório o tráfico incentivar a saída de pessoas do crime, quando aceita um menino de 10 anos que quer entrar para o crime.
É difícil falar isso, porque tem determinados lugares que eles não aceitam. Às vezes não é o tráfico que aceita, é a insistência daquele menor para estar ali, até pelo consumo hoje do crack. Com o consumo do crack hoje você vê crianças de 8, 9, 10 anos mergulhando no vício, e a opção deles é trabalhar para manter o vício. Vai esperar capinar um terreno, lavar um carro pra poder ter aquele dinheiro? A vontade dele é muito maior, porque o desejo dele de consumir a droga é muito mais intenso.

Ora por mim, pastor

No dia seguinte ao da primeira incursão nas comunidades dominadas pelo tráfico, combinamos de encontrar o pastor Rogério na avenida Brasil, em uma zona periférica do Rio, também sob a batuta de facções do crime organizado. Um cabreiro taxista nos leva e estranha ainda mais quando, ao telefone, Rogério nos avisa que seu carro quebrou na avenida. Deveríamos pegá-lo em outro canto. O taxista só se tranquiliza quando vê que nosso carona era um pastor, devidamente engravatado e de Bíblia em punho.

“Você vira aqui”, vai indicando Rogério, que logo pede: “O senhor se incomoda de entrar na comunidade?”. Era uma área disputada entre três facções. Nossa intenção era acompanhar um pouco mais da rotina de Rogério e ainda fazer algumas fotos com os traficantes. “Não tem problema”, tenta tranquilizar o pastor, “eu conheço o pessoal.” O taxista hesita e confessa: “Se o senhor não se importar, prefiro deixar vocês aqui. Vou ser honesto com vocês. Sou polícia militar”. E, para piorar, nosso chofer, além da patente, tinha uma arma no carro. Até Rogério concordou, melhor não arriscar. Meia-volta e rumamos para a casa do pastor, na baixada fluminense.

O PM taxista logo reconhece o passageiro, “você não é aquele pastor que vai aos presídios?”, e escuta interessado as histórias do passado de pecador de Rogério. Seu uso de cocaína, suas overdoses, suas dúzias de homens que salvou da execução dentro de favelas. Ao nos deixar no condomínio de casas de classe média na baixada fluminense, faz um pedido: “Ora por mim, pastor”.

Nosso pastor vive em uma vizinhança composta basicamente de policiais. Seu vizinho de muro é um delegado da polícia civil e até na sua área ele convive com armas à mostra. “Tem coronel que vai comprar pão com revólver na cintura. Aqui não tem assalto de jeito nenhum.” É uma rua tranquila e uma confortável casa onde vive com a mulher e a filha. Toda a renda do casal vem do AfroReggae. Sua esposa também trabalha para a ONG e ele mesmo não ganha soldo algum da Assembleia de Deus, onde prega aos domingos. Aliás, hoje, dia da entrevista que você agora lê, é domingo. E logo mais vamos zarpar para ver Rogério falando no púlpito. Mas, antes, queremos saber quem foi o rapaz que virou pastor.

Como foi sua adolescência?
Sempre morei aqui na Vila Norma, uma região de classe baixa. Meus pensamentos eram sempre de ter o melhor para mim, ter meu trabalho, comprar minha roupa, mesmo vendo a marginalidade.

Você já tinha contato com o crime?
As pessoas que moram na comunidade, mesmo sendo trabalhadoras, conhecem os traficantes. São pessoas nascidas e criadas juntas, mas por falta de opção algumas acabam ingressando na criminalidade. Mas pode ser um vizinho, um parente, entendeu? Eram pessoas que frequentavam os mesmos bailes que eu.

Tinha alguma profissão que você sonhava em seguir?
Sempre fui apaixonado por carros. Queria trabalhar com isso. E sempre gostei também do surf, teve épocas que eu ia pra praia pegar onda na Barra da Tijuca.

E você era bom?
Eu não era muito bom, não. Era mais de botar a prancha enterrada na areia pra mostrar pras pessoas. Mas eu gostava, frequentava os campeonatos no Recreio, no Pepê. Eu queria estar perto dos surfistas internacionais como Derek Ho. Também gostava muito de ir em festivais de rock.

O que você ouvia?
U2, The Smiths, Midnight Oil, Morrissey. Eu fazia coleção de discos, tinha mais de 70! Eu ia muito em discoteca, em shows do Plebe Rude, Capital Inicial, Legião Urbana… Era roqueiro.

Você tinha uma relação boa com seus pais?
Embora fôssemos pobres, eu tinha uma relação muito boa com eles. Mas meu pai teve uma vida de muito sofrimento, sempre dentro de hospital se recuperando de problemas gravíssimos. Certa vez ele puxou a gasolina com uma mangueira do tanque de um carro, acabou caindo na boca dele, foi pro hospital, teve uma parada cardíaca. O falecimento do meu pai desestruturou toda a família.

Aí seus problemas começaram?
Foi. Logo quando minha mãe decidiu arrumar uma outra pessoa e eu não aceitei. E ela falou: “Ou você aceita ou procura um outro lugar pra morar”. Decidi morar com um primo meu. E eu não conseguia mais ter ânimo para trabalhar, perdi meu emprego de office boy e me deu uma depressão muito grande. Eu nunca tinha experimentado nada. E me entreguei às bebidas com uns 18 anos. Comecei a beber, fumar cigarro. Depois maconha, cocaína…

E como você ganhava dinheiro?
Fazendo um adianto pra um traficante, usava minha casa para embalar as drogas. Muitas vezes quando a pessoa é viciada ela tenta se aproximar do traficante, porque ela não consegue manter o vício. E sendo amiga do traficante ela vai ter uma quantidade de cocaína que o traficante vai lhe dar.

Você era viciado, de não passar sem?
Sim. A ponto de dizer que eu ia morrer cheirando cocaína. E quase que eu morri. As duas overdoses que eu tive foram dentro de casa. Antes de misturar a cocaína com pó Royal pra vender, eu cheirava pura. Entrava em paranoias de achar que a polícia estava sempre prestes a me pegar. Até que um dia eu fui preso mesmo.

Como foi essa prisão?
Estava num baile com o gerente da boca de fumo. Tínhamos entrado com bastante cocaína e toda hora a gente ia pro banheiro pra cheirar. Chamamos a atenção do segurança, até que ele enquadrou a gente, chamou a polícia e já saímos algemados de dentro da discoteca. Como a gente tinha 25 g, fomos autuados por tráfico.

E você ficou preso?
Os caras da DP queriam dinheiro pra me liberar. Como eu não tinha, quem financiou foi o tráfico e fizemos o acordo com a polícia. É aquela situação… a pessoa que não tem a quem recorrer recorre a quem tem condições de ajudar. E quando eu recorri ao tráfico foi porque eu não tinha como me soltar.

E teve que trabalhar com eles para pagar a dívida?
Tive. Foi quando eu comecei a endolar a cocaína. E também era motorista do tráfico. Quando uma pessoa quisesse sair pra fazer um assalto eu tinha que estar à disposição. Mas eu não durei muito. Logo desisti.

E como você largou o tráfico?
Eu sempre falo que o que mais tira as pessoas da vida do crime é o evangelho. E o que me trouxe essa mensagem foi ver o gerente da favela, um cara poderoso, meu chefe, que tinha marcas de tiro no corpo, me dizer: “Rogério, a partir de hoje eu não vou ficar mais na boca. Eu vou para uma igreja. Vou entregar minha vida a Deus”. E aquilo me chamou muito a atenção.

Foi o exemplo dele que te motivou a buscar a igreja?
Foi. Porque, se Jesus liberou um grande traficante, eu que era iniciante seria mais fácil. Já me vi enquadrado para ser morto e não me mataram. Teve também uma troca de tiros em que um inimigo mirou para me acertar e na hora passou uma pessoa na frente e tomou o tiro na cabeça. Aquele tiro era pra acertar em mim e pegou no morador que passou correndo na minha frente e caiu morto. E era um trabalhador, nem fazia o que eu fazia. Ali eu vi que Deus colocou a mão sobre mim, porque era pra eu ter morrido.

É possível a pessoa se transformar dessa maneira sem o evangelho?
É possível, mas há possibilidade de essa pessoa voltar a errar novamente.

Mas com o evangelho também há essa possibilidade…
Também. É uma luta. Tem uma passagem que diz que o diabo não se dá por derrotado.

É possível chegar ao paraíso por outras religiões? Ou sem nenhuma?
Rapaz, muitas pessoas dizem que todos os caminhos levam a Deus. Pelo meu pensamento, pelo conhecimento que tenho da Bíblia, Jesus diz assim: “Eu sou o caminho e ninguém vai ao Pai a não ser por mim”. Aí cada um que examine a Bíblia. O interior de cada um só quem conhece é Deus.

Se Deus é tão bom e poderoso, por que o mal prevalece tanto?
Prevalece porque Deus permite. Até quando o mal atinge uma pessoa é porque Deus quer mostrar o poder dele. A gente estava em uma guerra, mas uma guerra espiritual, uma guerra do bem contra o mal. Eu vou para aqueles lugares perigosos para fazer um trabalho que tem que ser feito. Mas está chegando o dia de Jesus voltar. Ele disse que voltaria quando tivesse terremoto, maremoto, pragas. Hoje isso está acontecendo. Se você reparar, o tempo está sendo abreviado, tudo passa muito mais rápido. Isso são sinais…

Então a volta de Jesus está para acontecer em pouco tempo?
Em pouco tempo. Olha aquele vulcão na Islândia, as chuvas no Rio de Janeiro, são muitos sinais. Deus está mostrando os sinais para que as pessoas despertem.

Falando em apocalipse, você acompanha a relação do governo com as comunidades carentes há mais de 20 anos. Vê alguma melhora nesse processo ao longo do tempo?
Na minha visão tem melhorado um pouco, tem novos programas sociais. É um problema que vem de muitos anos, não é um erro só nem há uma solução simples. Pra consertar isso o governo acaba agradando um lado, mas desagradando outros.

O que você pensa do governo Lula?
O ser humano vai muito pelo que ele ouve. Eu tinha uma grande má impressão do Lula. E tem momentos em que a gente se decepciona com os nossos pensamentos, e eu me decepcionei com os meus. Ele tem mostrado um governo muito bom com esses projetos no Rio de Janeiro, o PAC. O que ele fez em pouco tempo muitas pessoas não fizeram. É um governo que se destacou, até porque ele veio da miséria. No discurso de posse dele eu me emocionei. Porque na hora que ele chegou naquela posição ele deu toda a honra a Deus.

O que você acha dessa presença cada vez maior dos evangélicos na política?
Não me pergunta isso não, rapaz [sorri].

E o que deveria mudar dentro da polícia? Se fosse secretário de segurança, o que faria?
Isso aí é difícil de responder, entende? Muito delicado. Mas nós temos hoje um projeto do AfroReggae em parceria com a polícia civil que se chama Papo de Responsa. O coordenador desse projeto é uma pessoa que é da polícia civil mostrando a forma correta que a polícia tem que agir. É um grupo de policias civis em parceria com um grupo de ex-traficantes e ex-presidiários.

Muita gente diz que a melhor maneira de combater o tráfico seria legalizar as drogas. O que você acha disso?
É uma pergunta difícil, porque eu tenho uma resposta pro lado espiritual e uma pro lado social. Pelo lado espiritual é difícil liberar as drogas. Mas também tem o lado social, em que muitas autoridades estão chegando à conclusão de que seria boa a legalização. Numa entrevista assim eu fui pego de surpresa… É complicado falar para liberar, mas, se fizerem isso, o governo vai ter que tentar desincentivar as pessoas igual faz com o cigarro. E a renda da venda dessas drogas legalizadas tem que ser toda distribuída na área de recuperação, educação. Vai ter que investir mais nas igrejas evangélicas também, dar um apoio maior pra se fazer um trabalho de resgate das pessoas desse caminho.

E a polícia, pela sua relação próxima com o tráfico, não te vê como suspeito ou inimigo?
Não mesmo. Mas já aconteceu de eu estar em uma igreja e os policiais entrarem, me pegarem lá dentro e me baterem muito. Queriam que eu dissesse onde estava um traficante. Logo depois eu tive o apoio das autoridades, que viram que aqueles policiais estavam errados, disseram que eu poderia depor contra eles. Mas naquele momento eu preferi deixar de lado, acreditei na justiça de Deus. E aconteceu que aquele policial que invadiu a igreja, me pegou e me bateu hoje é meu amigo. É um evangélico.

Como é sua rotina de trabalho?
Eu costumo acordar por volta das 6h30, saio para o complexo penitenciário de Bangu e fico até umas 16h30. Na saída sempre tem o telefonema de alguma pessoa pedindo ajuda. Uma mãe que não consegue resgatar o filho do vício das drogas, pessoas amarradas para morrer, e isso vai até as três da manhã. Às vezes estou deitado com minha família, acordo com o telefonema avisando que tem gente pra ser executada. E eu saio pra resgatar.

O dízimo é parte importante na demonstração de fé da pessoa?
É uma das partes fundamentais, porque é bíblico pegar a décima parte do seu salário e dar para Deus. A igreja hoje é uma obra social muito grande. Porque uma pessoa, fiel ou não, procura a igreja para ser ajudada. E a igreja sempre dá uma cesta básica a uma pessoa, cuida de um órfão, de uma viúva… Jesus liberta a pessoa do cigarro, liberta da bebida, da maconha, da cocaína, da boate. Olha quanto dinheiro a pessoa joga fora. Se ela observar, ela dá 70% pro diabo. E por que ela não pode pegar 10% e investir no reino de Deus?

Igrejas evangélicas sofreram muitos escândalos envolvendo pastores e dinheiro. Você sofre preconceito por ser pastor?
Na verdade eu não sinto isso das pessoas porque não é de agora que elas me conhecem, é um trabalho de muitos anos. Mas todos sabem dos escândalos da igreja evangélica. Mas nós sabemos discernir onde está o bem, onde está o mal, mesmo dentro das igrejas Eu sei onde está o bem e onde está o mal.

Como você se prepara para ser um guia espiritual?
Tem um curso de teologia, tem cursos que igrejas oferecem, mas a maior orientação que eu recebi foi na prática, foi convivendo nas comunidades. Eu comecei dentro das comunidades por ser de uma, por eu ter saído daquela vida errada. Foi aí que eu comecei a visitar meus amigos que ainda se encontravam nas drogas, visitar meus amigos que estavam presos. E aquelas visitas se tornaram cultos dentro das delegacias, nas favelas. E assim fui me aperfeiçoando. Pra fazer um trabalho desses nas comunidades
é preciso ter um revestimento.

Vimos você orando por bandidos. E hoje um policial pediu sua bênção. E como é isso de orar para os dois lados de uma só guerra?
É uma guerra, e eu tenho que estar no meio disso como uma luz. O traficante tem o lado dele, e a polícia o dela. Eu não tenho lado. E eu sou respeitado pelo que eu faço, porque eles sabem que eu não levo perigo, sabem que não estou ali para levar informação pra ninguém Hoje entro em qualquer presídio, em qualquer facção, do Comando, do Terceiro, do ADA. E tenho um apoio porque já foi mais do que mostrado para eles a pureza do meu trabalho.

Pega Jesus!

Apressados, deixamos a baixada fluminense com a família de Rogério para o culto das 18h. O caminho é longo e o assunto segue na boca de nosso motorista contratado. “Em São Paulo não tem tanta violência porque a Rota matava”, diz o homem ao volante. “O pastor vai me desculpar, mas pra mim tinha que passar fogo em muito bandido. E em políticos também.” Rogério discorda, mas não discute. Apenas segue seus causos de evangelização em escabrosas situações. Como no dia em que ficou com sua mulher e filha
entrincheirados na favela enquanto o Bope mandava bala de dentro do caveirão. “Eu me lembro, papai!”, interrompe a filhinha de 4 anos. “Nunca mais quero passar por isso”, conclui a criança puxando risos e choque nos demais.

O carro estaciona em uma favela no pé do Corcovado, onde um Cristo Redentor coberto por tapumes era reformado. Vamos a uma igreja simples, e o culto já está em andamento. Música gospel retumba ao vivo. Uma maioria de mulheres se espalha pelos bancos. E as falas dos pastores se intercalam com as canções. Até que pastor Rogério é chamado. E viramos nós, os repórteres, o tema do sermão. As testemunhas de suas andanças e conquistas. De como vimos – e vimos mesmo – Rogério aplacando com uma oração os demônios de um crackeiro em surto paranoico no meio da favela. De como vimos o evangelho – e vimos mesmo – provocando hesitação em bandidos menos, mas ainda, violentos. E de como viemos – e viemos mesmo – de São Paulo para contar aos outros de seu importante trabalho.

Sua fala sem plurais segue alta, e com a pompa e a estranha eloquência dos pastores. Mas com uma curiosa e nada usual conclusão, antes de jogar sua libertadora oração sobre as cabeças de fiéis ajoelhados defronte ao palco – repórteres inclusos. Assim falou o pastor Rogério: “É preciso estar pronto! Porque Jesus vai voltar. E Jesus vai voltar como um ladrão… ele chega, mas ninguém sabe a hora”.

fonte: Trip
dica do Chicco Sal via Pavablog

quinta-feira, 29 de abril de 2010

Fé e Economia

Não é o sexo. Nem sequer a política. O verdadeiro tabu da teologia é a economia. «Gastamos o nosso dinheiro como se não conhecêssemos o Evangelho; e lemos o Evangelho como se não tivéssemos dinheiro», afirma o jesuíta John Haughey, sublinhando um sentimento difuso entre os teólogos e na Igreja dos Estados Unidos.

Contudo, hoje, nenhum outro aspecto influencia tanto a vida individual e colectiva como o económico, e poucos outros assuntos são rebuscados de forma tão incisiva nas Escrituras como os económicos.

O principal desafio que hoje a família humana tem de enfrentar é a iníqua distribuição de riqueza e poder. Um modelo económico que transfere a riqueza dos cada vez mais pobres para os cada vez mais ricos. As políticas neoliberais de reajustamento estrutural não só tornam mais dura esta polarização como cavam um fosso mais profundo de alienação física e social.

Quando vemos que o vendedor de fruta tem de fechar a loja, ou que empresas familiares não conseguem sobreviver, no Norte, também estamos a ser testemunhas daquela destruição que, como uma epidemia, tem vindo a devastar as culturas locais, as instituições e a natureza no Sul.

Qualquer teologia que se recuse a enfrentar esta realidade torna-se fútil. E cruel. Nós, cristãos, temos o dever de discutir economia, de falar dela confrontando-a com a economia do Evangelho. «As igrejas talvez se tenham tornado no último refúgio da nossa cultura onde se pode falar abertamente de valores sem ser de mercado», afirma Cornel Wesa, professor de estudos afro-americanos e de filosofia da religião na Universidade de Harvard. Aqueles que tentam desafiar o capitalismo pós-moderno e o seu mercado auto-refencial estão já a lutar por uma linguagem e uma prática alternativas. Num contexto de aparente descrédito do socialismo, este vazio ideológico proporciona à Igreja uma oportunidade única: redescobrir uma visão totalmente diferente da praxe social e económica. Esta visão funda-se no âmago mais profundo das Escrituras.

A Bíblia não aceita a injustiça como uma condição permanente. Pelo contrário, são dadas ao povo de Deus as instruções para desmantelar os principais códigos e estruturas de uma riqueza e de um poder estratificados, para que todos deles possam participar. Esta concepção da sociedade e da economia é expressa em diversas passagens: no Êxodo (cap. 16), nas leis do Levítico (25), nas exortações do Deuteronómio (15), nas profecias de Isaías (5), nas parábolas de Jesus (Mt 25), nos veementes apelos dos apóstolos (2 Cor. 8-9).

Não atraiçoar o sábado

«Sábado» deriva do hebraico shabat, que significa repousar, ou deixar de trabalhar. Encontra-se na Bíblia no fim da narração da criação (Génesis 2) e assume-se em todos os livros como o fundamento da visão social e económica da Bíblia. Os homens são convidados a imitar a Deus na prática do sábado: recorde-se a típica narração de fome e de pão do Êxodo (o maná do cap. 16), encaixada num contexto de histórias de sede e de água.

Os antigos israelitas, tal como os modernos norte-americanos, não conseguiam imaginar um sistema económico diferente do dominante, na altura o egípcio: um sistema complexo, militar, industrial, tecnológico, que os havia tornado escravos. Os israelitas foram libertos da escravidão, mas encontravam-se a viver a dura realidade da sobrevivência fora do sistema imperial, de encontrar que comer.

O maná não é apenas um milagre que enche o estômago. É a alternativa de Deus à economia do Egipto: o pão que cai do céu é símbolo da sementeira e da colheita como dons de Deus. O primeiro ensinamento ao povo liberto diz respeito a uma forma de produção económica!

Moisés dá três indicações concretas para entrar nesta economia alternativa.

1. Cada família deve recolher só o necessário para o seu consumo. Na economia de Deus não há lugar para o demasiado ou para o pouco de mais: isto contrasta radicalmente com o capitalismo moderno em relação à riqueza e à miséria. Esta teologia do «quanto basta» é sublinhada por uma outra versão do trecho do maná, provavelmente posterior (Números 11), onde o povo, que se lamentava por só ter maná e não carne, é castigado com carne «de mais».

2. O maná não pode ser acumulado nem armazenado. No Egipto, riqueza e poder definiam-se pela capacidade de poder armazenar coisas supérfluas. Não é por acaso que o trabalho forçado do povo israelita consistia na construção de cidades-armazéns para o faraó (Êxodo 1), onde se recolhiam os despojos e as taxas das populações vencidas: esta acumulação prefigura já o capitalismo moderno. A Bíblia entende que as civilizações dominantes exercem uma força convergente e absorvem trabalho, recursos, riquezas e uma cada vez maior concentração de poder idolátrico (o protótipo deste processo é a história da Torre de Babel, Génesis 11). Por isso, Israel é convidado a fazer circular a riqueza redistribuindo-a e não a concentrá-la acumulando-a.

3. O mandamento de observância do sábado foi dado ainda antes dos dez mandamentos no monte Sinai. Se alguém não observar o sábado morrerá (Êxodo 31). O sábado é o início e o fim da lei.

Por isso, nós tornamos vulgar (e até profanamos) o sábado se o considerarmos simplesmente como um dia em que os hebreus faziam o estritamente necessário. A prescrição de um repouso periódico para a terra e para os homens que trabalham significa destruir a tentativa (a tentação) do homem em controlar a natureza e de maximizar a produção.

A história do maná mostra que o homem depende de uma economia de graça divina. Observar o sábado significa lembrar-se todas as semanas de dois princípios básicos da economia: o objectivo do «quanto basta» para cada um, e a proibição da acumulação de riquezas. Esta visão contrasta totalmente com a economia que hoje conhecemos. A nossa incredulidade é mesmo antecipada com um certo humorismo pela própria Bíblia: o termo maná deriva da expressão de incredulidade «o que é isto?».

O código de justiça social do sábado alarga-se a um ciclo de sete anos (Êxodo 23) em que também os pobres e os animais selvagens poderão livremente comer; o livro do Levítico define o jubileu como o ano do sábado por excelência (celebra-se após o 49º ano, ou seja, cada sete ciclos de sete anos): a sua finalidade é desmantelar as estruturas da desigualdade social e económica pela remissão das dívidas aos membros da comunidade; a redistribuição da terra aos primitivos proprietários; a libertação dos escravos. A razão profunda deste reequilíbrio unilateral da comunidade baseia-se na certeza de Israel de que a terra pertence a Deus e que o povo do êxodo, liberto da escravidão do Egipto, jamais haveria de regressar a um sistema de nova escravatura.

O autor do Deuteronómio (15) quis ir tão além que até incluiu o perdão das dívidas no ano do sábado. Era uma barreira colocada à inevitável tendência da sociedade humana em concentrar riqueza e poder nas mãos de poucos, criando uma hierarquia de classes. Nas sociedades agrícolas, como o Israel bíblico (ou como parte do Sul dos nossos dias), o ciclo da pobreza inicia-se quando uma família cai na espiral da dívida, que se agrava quando a família tem de vender a terra para pagar os juros, e fecha-se quando as pessoas vendem a única coisa que lhe resta: a sua força de trabalho. Tornam-se então escravos. Na Antiguidade não havia bancos e por isso eram os grandes proprietários de terras que tinham dinheiro para emprestar e que, quando não podiam pagar, os tornavam escravos nas suas propriedades.

Prisioneiros da ortodoxia do mercado

A Igreja tem dificuldade em escutar esta boa nova. A nossa teologia esteve por muito tempo prisioneira da ortodoxia do mercado do capitalismo moderno. Foi assim que os nossos medos nos convenceram de que o jubileu bíblico é, na melhor das hipóteses, uma utopia – na pior, ideologia comunista.

Isto conduz-nos, uma vez mais, à Bíblia: não há dúvida de que o mandamento de observância do sábado era regularmente esquecido por aqueles israelitas que pretendiam consolidar a sua posição social e as suas riquezas.

A traição ao sábado por parte dos israelitas transforma-se numa censura constantemente levantada pelos profetas. Isaías acusa os chefes de terem roubado os pobres (Isaías 3, 14-15); Amós acusa os comerciantes de considerarem o sábado um obstáculo aos seus negócios e de tratarem os pobres como um grupo a explorar em vez de salvaguardarem os seus direitos às alimpas (Amós 8, 5-6), Oseias lamenta que a fidelidade ao comércio internacional tenha tomado o lugar da aliança com a economia divina da graça (Oseias 2, 7). Mas o trecho mais explícito é o que atribui a destruição de Jerusalém à incapacidade do povo em observar o sábado (2 Crónicas 36, 20-21; Levítico 26, 34-35).

Também (e sobretudo) Jesus

A economia do sábado caracteriza também o núcleo do ensinamento de Jesus e torna-se motivo de conflito entre Jesus e a ordem instituída dos judeus, conflito que lhe custará a morte.

Não é por acaso que, entre as inúmeras possibilidades que a Bíblia lhe apresenta, Jesus opta, para definir a sua missão (Lc 4), pelo capítulo 61 de Isaías, o profeta onde a economia do sábado é plenamente reabilitada.

Na oração do pai-nosso (Lc 11) e em todos os Evangelhos o verbo empregue para exprimir o perdão dos pecados é o mesmo utilizado para cancelar as dívidas.

Ao contrário da sociedade em que vivemos, que se recusa a ver as dimensões económicas de comportamentos imorais ou criminosos, os Evangelhos não espiritualizam «o pecado» e não ignoram a realidade da dívida, apresentando os dois aspectos em profunda correlação.

A exortação de perdoar setenta vezes sete (talvez uma referência ao sistema jubilar do Levítico e a Génesis 4, 24) é seguida e explicada por uma peroração, política e económica, sobre a responsabilidade de perdoar as dívidas (Mt 18). No capítulo segundo de Marcos, Jesus permite aos seus discípulos colherem espigas em dia de sábado para matarem a fome sem olharem às convenções sociais. E eis a estocada: «O sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado.» Não é uma afirmação de posse, menos ainda uma anulação da lei do sábado. Pelo contrário: afirma-se que o sábado faz parte da criação divina, e que a sua finalidade é a de nos tornar mais humanos, num mundo onde, pelo contrário, uma parte tão grande do pensamento e da prática social e económica nos desumaniza.

Mas há mais: Jesus procura fundar comunidades entre grupos alienados social e economicamente. Chama Levi (Mateus) a segui-lo, e Levi abandona a sua actividade de cobrador de impostos. Porque é que este comportamento suscita tanta celeuma nas autoridades? A resposta encontramo-la no episódio de Zaqueu (Lc 19). Este rico credor também recebe Jesus, mas compreende imediatamente que, para o hospedar, tem de reparar uma grande injustiça económica: «Dou aos pobres metade dos meus bens e se prejudiquei alguém restituo-lhe o quádruplo.» É este programa económico «nivelador» que é recusado por quem determina oficialmente as dívidas. Ontem como hoje.

Levi e Zaqueu acolhem a libertação proposta por Jesus através da redistribuição dos bens. Um outro homem, rico, não consegue e recusa-a (Mc 10, 21). É interessante notar que na fórmula empregue pelos Evangelhos para indicar a opção de seguir Jesus («deixaram tudo e seguiram-no») é usado o verbo aphiemi, deixar, que é o mesmo utilizado para perdoar os pecados e as dívidas. Jesus espera que os seus discípulos adoptem a sua economia fundada na graça. E promete-lhes que, se deixaram a casa, a família e os campos (ou seja, a economia agrícola do seu tempo, os locais de consumo, força de trabalho, produção), receberão cem vezes mais…

Nesta nova economia, que Jesus chama Reino, não haverá nem pobres nem ricos. Por isso, os ricos não podem lá entrar. Esta perspectiva é tão radicalmente diferente da nossa visão da economia que, então como hoje, os discípulos têm dificuldade em crer que ela é verdadeira (Mc 10, 26).
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Mudança 5 março, 2010
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O caminhão de mudança passou por aqui. O Amarelo ganhou novo endereço e nova cara. Entre sem tirar as sandálias.

Por Ched Myers, autor do instigante O Evangelho de São Marcos, Ed. Paulus
Artigo publicado originalmente na Revista Além-Mar
Via: Amarelo Fosco

segunda-feira, 15 de março de 2010

O QUE FODE SOMOS NÓS



Tenho um amigo que é um santo secular, absolutamente sem religião, que concilia as façanhas de ser homem de família, artista irretocável e portador das boas novas aos pobres (sendo que eu, naturalmente, não sou nenhuma dessas coisas). «E você, Paulo, tem heróis?»Certa vez esse sujeito estava falando comigo sobre outro cara, amigo dele, que ele considera ser ao mesmo tempo artista mais notável e muito mais engajado nas questões sociais do que ele mesmo, um cara que meu amigo tem por seu herói pessoal.

Nesse momento ele parou o seu relato para perguntar:

– E você, Paulo, tem heróis?

Apanhado de surpresa, ocorreu-me responder de modo ao mesmo tempo provocativo e sincero. Ergui uma sobrancelha e arrisquei, como se estivesse em grande dúvida:

– Jesus?

– Jesus não vale – exigiu meu amigo. – Jesus é o herói de todo mundo.

Achei aquilo fascinante, tanto a noção de que Jesus pudesse ser o herói secreto daqueles que não usurpam o seu nome quanto a ideia subjacente, de que mesmo quem admira Jesus carece sensualizá-lo, encontrar-se efetivamente com ele numa pessoa de carne e osso que adequadamente encarne os seus valores e desafios. Eu conhecia uma pessoa assim, o Néviton Marci, mas antes que pudesse mencionar o nome dele meu amigo avançou seu argumento. Sabendo que minha menção a Jesus tinha sido em grande parte uma provocação sobre sua postura arreligiosa, ele prosseguiu:

– E você sabe muito bem que eu tenho um relacionamento de amor platônico com o cristianismo – e, para explorar todas as possibilidades da metáfora, arrematou: – Eu não fodo com o cristianismo como vocês fazem.

Eu, que nunca tinha visto meu amigo recorrer a um palavrão, tive de render-me imediatamente a sua lógica, sua lucidez e sua indignação. Porque quanto mais nós cristãos tentamos foder com o cristianismo, no sentido de conhecê-lo (biblicamente falando) e de nos relacionarmos intimamente com ele, mais acabamos fodendo com ele, no sentido de arruiná-lo juntamente com a sua reputação. Deveria nos parecer evidente que ler, escrever, estudar e tagarelar incessantemente sobre Deus e sobre a Bíblia, seja em livros ou blogs, no rádio ou na tv, na igreja ou no local de trabalho, não tem absolutamente qualquer relação de fidelidade com a herança de Jesus ou com os desafios deixados pela sua mensagem. Gente sem religião como meu amigo e seu herói, que não usurpa publicamente o nome do Filho do Homem, é capaz de levar adiante a sua boa nova e honrar a sua herança de forma muito mais aperfeiçoada do que o mais inatacável e articulado dos cristãos. Porque, muito evidentemente, o reino de Deus não consiste em palavra, mas em poder.

Aplica-se aqui, de forma irretocável e como sempre, a parábola do fariseu e do cobrador de impostos. Por um lado, os cristãos somos os fariseus que agradecem em voz alta, na luz de um palco que construímos para nós mesmos, a dádiva de não sermos pecadores como os irreligiosos; por outro, os irreligiosos que fazem avançar secretamente o reino são como o cobrador de impostos, que não ousam assumir a ribalta e não se consideram dignos de levantar a cabeça nem mesmo para proferir o nome do herói cuja herança poluímos. Fique muito claro, porque esse mesmo Jesus deixou-o muito claro, que não seremos nós a merecer o abraço de confidência do mestre.

O que fode com o cristianismo somos nós.

Paulo Brabo na sua Bacia das Almas

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

PUTA é O CARALHO




O nome verdadeiro é Maria Aparecida da Silva, mas na Central do Brasil é conhecida por Márcia. Aos 42, trabalha como faxineira de manhã em uma firma e prostituta a tarde, em frente a estação de trem mais movimentada do Rio de Janeiro.
Era gostosa, mas depois de tantos anos trabalhando como puta já não é mais. Assim mesmo ainda tem seus clientes fiéis, que não dispensam uma foda “completa” por R$35,00 depois de um dia de trabalho pesado. Como não é mais jovem, quem chegar com R$ 15,00 leva. São pedreiros, pintores, taxistas, eletricistas, porteiros. Usam o corpo de Márcia pra aliviar as tensões do cotidiano embaçado que gente pobre tem.
Cida mora em Itaguaí, zona norte do Rio, a 70 km do seu local de trabalho. De busão são quase duas horas.
A casa é simples, quarto e sala sem acabamento, tijolo baiano a vista, chão de terra e cimento, móveis improvisados, cortinas ao invés de portas e um retrato de Jesus na parede.
Um pedaço de bombril na antena ajuda a diminuir o chiado do capitulo de Malhação que as crianças assistem na televisão pequena sobre o armário. Como toda casa pobre, falta tudo mas sobra dignidade. Café, bolacha de maizena e Dolly sobre a mesa pra receber os convidados.
Mora ali com seus filhos, André, 18, Camila, 22, seus netos Wesley,5, Ketheleen,3, a mãe alcoólatra Idalina e a filha adotiva deficiente mental Verinha.
Cida sustenta a casa sozinha. Não fosse o dinheiro dos programas, provavelmente o filho estaria no crime, a filha na prostituição, a mãe alcoólatra pela rua gritando absurdos abraçada a uma garrafa de pinga e só Deus sabe onde estariam os netos e a filha adotiva deficiente mental.
Puta é o caralho, Cida é uma guerreira. Foi para o sacrifício e manteve na unha vermelha a família unida. Foi capaz de perder sua dignidade pra preservar a dos seus. Quem seria capaz disso? Você seria?
Ao conhecer essa mulher, tive a certeza absoluta de que as mulheres são superiores aos homens.
Pensei nos defensores da moral e bons costumes dos programas vespertinos de TV, nos hipócritas que bradam absurdos nos palanques, no horário eleitoral gratuito. Sinto o gosto de vômito na garganta. Quem é mais puta? Quem é mais desonesto? Quem é o verdadeiro filho da puta?
Com olhar forte e digno, Cida tem a cabeça erguida e a hombridade de quem sabe que cumpre o seu dever com rara honestidade. Quem hoje em dia pode dormir tranqüilo assim?

Por João Wainer

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

A Igreja que não existe mais (4)



por Ariovaldo Ramos


O que existe?

- A Comunhão dos santos existe na realidade da Igreja invisível. Mas, que relevância tem na história uma igreja invisível?

- Ajuntamentos cúlticos – há os que procuram se pautam pela Bíblia, e os que nem tanto.

- Instituições – (muitas e cada vez mais) há as que ainda tentam ser apenas um odre para o vinho, e as que nem tanto.

- Discursos sobre Cristo e sua obra – há os que falam sobre Jesus, segundo a Bíblia, e os que nem tanto.

- Conversões pessoais – há as que trazem marcas do Novo Testamento, e as que nem tanto.

- Missionários – há os que pregam a Cristo, sua morte e ressurreição, e os que nem tanto. O apoio ao missionário está mais para esmola do que para sustento.

- Ação social – há as que querem emancipar o pobre, por amor a Cristo, e as que nem tanto.

- Pastores e Lideres – há os que tentam alcançar o padrão dos presbíteros do Novo Testamento, e os que tanto menos.

- Títulos - em profusão, constratanto com a escassez de irmãos.

- Orações - principalmente, por necessidades materiais, sociais e de cura, que parecem não ser respondidas, pelo menos, não a contento.

- Milagres – (mas pessoais) a misericórdia divina continua se manifestando, porém, não se entende mais o princípio de sua ação.

- Ministérios – há os que são ministros (servos), e os que nem tanto.

- Riqueza – Instituições estão cada vez mais ricas, e há os que usufruem da mesma.

- Irmãos e irmãs que amam a Cristo e a Igreja, mas que estão cada vez mais confusos sobre o que estão assistindo – e há, cada vez mais, um amor em crise.

E ecoa a voz do Cristo: Contudo quando vier o Filho do homem, porventura achará fé na terra? (Lc 18.8)

Talvez, ainda haja tempo de pedir perdão!

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

A Igreja que não existe mais (3)

Pelo que orava a Igreja do Novo Testamento?

“Mas eles ainda os ameaçaram mais, e, não achando motivo para os castigar, soltaram-nos, por causa do povo; porque todos glorificavam a Deus pelo que acontecera; pois tinha mais de quarenta anos o homem em quem se operara esta cura milagrosa. E soltos eles, foram para os seus, e contaram tudo o que lhes haviam dito os principais sacerdotes e os anciãos. Ao ouvirem isto, levantaram unanimemente a voz a Deus e disseram: Senhor, tu que fizeste o céu, a terra, o mar, e tudo o que neles há; que pelo Espírito Santo, por boca de nosso pai Davi, teu servo, disseste: Por que se enfureceram os gentios, e os povos imaginaram coisas vãs? Levantaram-se os reis da terra, e as autoridades ajuntaram-se à uma, contra o Senhor e contra o seu Ungido. Porque verdadeiramente se ajuntaram, nesta cidade, contra o teu santo Servo Jesus, ao qual ungiste, não só Herodes, mas também Pôncio Pilatos com os gentios e os povos de Israel; para fazerem tudo o que a tua mão e o teu conselho predeterminaram que se fizesse. Agora pois, ó Senhor, olha para as suas ameaças, e concede aos teus servos que falem com toda a intrepidez a tua palavra, enquanto estendes a mão para curar e para que se façam sinais e prodígios pelo nome de teu santo Servo Jesus. E, tendo eles orado, tremeu o lugar em que estavam reunidos; e todos foram cheios do Espírito Santo, e anunciavam com intrepidez a palavra de Deus.” At 4.21-31

Oravam para que nenhum sofrimento os impedisse de glorificar a Cristo, de anunciá-lo com coragem e determinação – o Cristo que eles viviam diariamente pela fraternidade solidária. Oravam por missão!

Para além da Igreja que está sob perseguição, não há sinal de que essa Igreja ainda exista!

por Ariovaldo Ramos

Lição de Ética



Domingo ensolarado em Salvador, exatamente há 40 anos atrás. Dia 16 de Novembro de 1969, o estádio da Fonte Nova na capital baiana onde morava seria o palco do segundo maior evento do ano.

O primeiro tinha ocorrido alguns meses antes, acho que em Junho, com o primeiro passo na Lua – “um pequeno passo para um homem e um grande passo para a Humanidade”, lembra? O mundo parou para ver Neil Armstrong realizar o feito!

O mundo estava parando mais uma vez em 1969 para assistir ao milésimo gol de Pelé. Eu já tinha ido a Recife e a João Pessoa acompanhando a tournée do Santos, na época o melhor time do mundo. Acreditava que os 4 gols faltantes seriam feitos naquela série de amistosos no Nordeste — contra o Santa Cruz, no Recife dia 12 ou ao enfrentar o Botafogo da Paraíba no dia 14. Mas ele só fez 3 nesses dois jogos. Na Paraíba ele virou goleiro pois a coisa estava fácil demais e suspeitou da armação para que deixassem entrar qualquer bola que chutasse. No dia do jogo contra o meu querido Esporte Clube Bahia só faltava um gol!

O milésimo gol não foi marcado, mas foi um dia marcante para mim. Aprendi uma grande lição sobre Ética e Valores nesse dia.

Já no meio do segundo tempo Pelé driblou 2 adversários, desviou do goleiro e chutou para marcar. A bola estava a um palmo da linha fatal quando não se sabe de onde surgiu um pé que impediu o gol. Era o Nildo, zagueiro central do Bahia que se esforçou para tirar a bola e ouviu a maior vaia da história do futebol até essa época. Foi vaiado por quase 100 mil pessoas que lotavam o estádio em sua maioria torcedores do próprio Bahia.

Senti um engasgo na garganta naquele momento. Tinha o grito de Gol preso, mas decidi aplaudir o Nildo. Ele estava fazendo o que era correto, era pago para impedir que a bola entrasse nas redes do seu time, mesmo que fosse o tão desejado milésimo gol de Pelé.

Nildo virou o anti-herói do espetáculo, quase foi demitido no dia seguinte, mas tornou-se meu herói particular. Na hora da verdade, temos de fazer o que é certo e honrar nosso trabalho, mesmo que a gente corra o risco de levar uma vaia de 100 mil pessoas.

Parabéns, Nildo! Você não fez corpo mole, foi corajoso e valorizou ainda mais o gol que Pelé finalmente marcou na quarta feira seguinte, dia 19 de Novembro, contra o Vasco da Gama, no Maracanã.

Via Blogdolider

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

A Igreja que não existe mais (2)

por Ariovaldo Ramos


“Está doente algum de vós? Chame os anciãos da igreja, e estes orem sobre ele, ungido-o com óleo em nome do Senhor; e a oração da fé salvará o doente, e o Senhor o levantará; e, se houver cometido pecados, ser-lhe-ão perdoados.” Tg 5.14-15

Os membros da comunidade do Cristo não precisavam orar por cura física, bastava procurar os presbíteros: lideres eleitos pelo povo, a partir de suas qualidades como cristãos (1Tm 3.1-7); que eles ungiriam com óleo, que representa a ação do Espírito Santo, porque é o Espírito Santo, quem unge e cura (Lc 4.18), e a pessoa seria curada; claro, sempre segundo a vontade do Senhor, porque essa é a regra de ouro: “Venha o teu Reino, seja feita a tua vontade, assim na Terra como no Céu." (Mt 6.10)

Os crentes em Jesus de Nazaré, não precisavam fazer varredura espiritual para ver se tinham qualquer problema, parecido com o que hoje é chamado de maldição hereditária, ou similar. A oração dos presbíteros ministrava o perdão de Deus, conquistado por Cristo na cruz e na ressurreição.

Deus havia respondido todas as orações por cura física pela instituição de presbíteros, que tinham a autoridade para ministrar o poder de Cristo sobre a enfermidade, segundo a vontade de Deus, dependendo, portanto, apenas, do que o Altíssimo tivesse decidido sobre a pessoa em questão.

Essa Igreja não existe mais!

Continua.

Parábolas sobre Deus

Rubem Alves


Algumas pessoas olham através da vidraça, discutem sobre uma casa que estão vendo, ao longe.

Uma das pessoas diz que aquela casa é habitada por um nobre, de hábitos aristocráticos e conservadores. Uma outra diz o contrário, que lá mora um operário, membro do sindicato, revolucionário. Uma terceira diz que os dois primeiros estão errados: ninguém mora na casa. Ela está vazia. Pedem a minha opinião. Eu me aproximo, eles apontam através do vidro, na direção da casa. Olho, olho, e concluo que alguma coisa deve estar errada com os meus olhos. Eu não vejo casa alguma. O que eu vejo são os reflexos do meu próprio rosto, nos vidros da vidraça...

Diz o Alberto Caeiro que pensar em Deus é desobedecer a Deus. Se Deus quisesse que pensássemos nele ele apareceria à nossa frente e diria: ‘Estou aqui!’ Mas isso nunca aconteceu. William Blake falava em ‘ver a eternidade num grão de areia...’ A eternidade se revela refletida no rio do tempo. Já tive uma paciente que achou que estava ficando louca porque viu a eternidade numa cebola cortada! Cebolas, ela já as havia cortado centenas de vezes para cozinhar. Para ela cebolas eram comestíveis. Mas, num dia como qualquer outro, ao olhar para a cebola que ela acabara de cortar, ela não viu a cebola: viu um vitral de catedral, milhares de minúsculos vidros brancos, estruturados em círculos concêntricos, onde a luz se refletia. Eu a tranqüilizei. Não estava louca. Estava poeta. Neruda escreveu sobre a cebola ‘rosa de água com escamas de cristal...’

Pessoas há que, para terem experiências místicas, fazem longas peregrinações a lugares onde anjos e seres do outro mundo aparecem. Eu, ao contrário, quando quero ter experiências místicas, vou à feira. Cebolas, tomates, pimentões, uvas, caquís e bananas me assombram mais que anjos azuis e espíritos luminosos. São entidades assombrosas. Você já olhou para elas com atenção?

Penso que Deus deve ter sido um artista brincalhão para inventar coisas tão incríveis para se comer. Penso mais: que ele foi gracioso. Deu-nos as coisas incompletas, cruas. Deixou-nos o prazer de inventar a culinária.

Místicos e poetas sabem que o Paraíso está espalhado pelo mundo - mas não conseguimos vê-lo com os olhos que temos. Somos cegos. O Zen Budismo fala da necessidade de se ‘abrir o terceiro olho’. Repentinamente a gente vê o que não via! Não se trata de ver coisas extraordinárias, anjos, aparições, espíritos, seres de um outro mundo. Trata-se de ver esse nosso mundo sob uma nova luz.

via Pavablog