Estive numa festa de batismo em casa de amigos não religiosos que fizeram uma cerimônia muito bonita para seu filho. Muitas coisas na festa pareceriam estranhas a uma pessoa como eu, nascida e criada em uma típica família católica, numa cidade do interior do Brasil.
Primeiro, era um "batizado sem padre". Segundo, era difícil desvendar o mistério dos casais de avós, até que eu entendi: um dos casais era a avó paterna do bebê, com seu atual marido. Outro casal era o avô paterno com sua atual esposa. E um terceiro casal eram o tio-avô paterno com sua esposa. Só para confirmar que aqui os divórcios e as famílias complexas, como eu as chamo, começaram muito mais cedo...
Muitas crianças presentes na festa. Também aí um retrato da diversidade e modernidade suecas. Duas chinesinhas filhas de um típico casal sueco que certamente as adotou, não sei se por opção (afinal há já muitas crianças precisando de pais no mundo) ou se por não poderem ter seus próprios filhos biológicos. Também os meio-irmãos do bebê que estava recebendo o nome. Havia ainda um menininho de 2 anos, de pai latino-sueco e mãe latina. E três outros, filhos de outro típico casal sueco.
A mais nova dessa última família, com um aninho de idade, é portadora da Síndrome de Down.
Brincava um pouco com a menina, que estava nos braços do pai, quando a mãe se aproximou e observou: você notou que ela tem Síndrome de Down, não? Respondi afirmativamente e ela me contou que havia feito o "teste", durante a gravidez, e ao receber o resultado de que havia muito baixo risco de problemas cromossômicos, não pensou mais no assunto.
Ao nascer a criança, o choque foi considerável para eles. Ela me disse que se sentiu enganada pelos exames, pelo sistema de saúde, sei lá... E ao mesmo tempo me explicava que sua filha, que tem desenvolvimento equivalente a um bebê de 9 meses, é uma maravilha e uma fonte de alegria!
Terminamos a conversa, com ela recomendando-me a leitura de um artigo de jornal, onde seu marido discutia o sentido dos tais testes...
Cheguei em casa louca para ler. Afinal, qualquer mãe já pensou no assunto.
Pois bem... em seu bem escrito artigo, o pai questionava o sentido de uma nova medida recentemente aprovada pelo governo local: aplicar 20 milhões de coroas suecas anuais (mais de 5,5 milhões de reais) a fim de generalizar a aplicação de testes para detectar anomalias cromossômicas e, assim, reduzir o número de crianças nascidas com Síndrome de Down na região de Estocolmo de 20 para 10 ao ano.
Porque o raciocínio é claro: os testes existem para que as pessoas possam evitar o nascimento dessas crianças. No caso da medida proposta, a um custo de 550 mil reais por bebê evitado... O autor pergunta se não existem outros problemas de saúde em que aplicar melhor estes recursos...
A cada ano nascem na Suécia 120 crianças portadoras de Síndrome de Down. Com a aplicação dos testes, medida já comprovada na vizinha Dinamarca, espera-se reduzir à metade o número de bebês portadores da síndrome.
O aborto aqui é livre e legal para qualquer mulher, até as 18 semanas de gravidez. Depois disso, necessita-se de uma autorização das autoridades, até a 22a. semana. Realizam-se todos os anos ao redor de 36 mil abortos no país.
Recentemente aprovou-se no parlamento uma lei que permite que mulheres de outros países europeus, principalmente daqueles onde o aborto é ilegal, possam vir à Suécia para suspender uma gravidez indesejada, desde que arquem com os custos para o sistema de saúde.
Os testes para detectar anormalidades cromossômicas também são muito comuns aqui e todos sabem, implícita ou explicitamente, que se fazem para evitar o nascimento de bebês com problemas.
A pergunta que fica no ar, então, é: por que criticamos as mulheres que, na China e na Índia, abortam seus bebês do sexo feminino, mas não vemos o problema ético de realizar testes para detectar anormalidades cromossômicas em nossos bebês?
Qual é a diferença? Que tipo de sociedade estamos construindo? Em tempo: o artigo no jornal tinha como título " Neonazismo em torno da Síndrome de Down".
Não deixa de ser interessante que essas perguntas venham de uma família declaradamente não religiosa e que está lidando - com muito amor e muita tranqüilidade - com seu bebê "diferente". Fiquei surpresa com a sinceridade e a força que emanava do artigo do jornal e daquela família que eu tive o prazer de conhecer.
Uma onda de paz, de alegria e de amor me invadiu...
Leitora do blog, Sandra Paulsen, casada, mãe de dois filhos, é baiana de Itabuna. Fez mestrado em Economia na UnB. Morou em Santiago do Chile nos anos 90. Vive há oito anos em Estocolmo, onde concluiu doutorado em Economia Ambiental.
filado do http://oglobo.globo.com/pais/noblat/
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