sábado, 19 de janeiro de 2008

O Profeta de Rio dos Cedros

Ouvi falar do profeta de Rio dos Cedros na minha passagem por Santa Catarina no começo deste ano. Foi só há duas semanas, no entanto, que terminei o longo processo de localizá-lo, telefonar para marcar um horário (ele se recusou) e entrevistá-lo.

Confesso que o dia da viagem encontrou-me irritadiço e agitado. Como preparar-se para encontrar alguém que, diz-se, é capaz de ler os pecados mais secretos de cada um meramente observando-o no rosto? Disseram-me que a casinha do profeta, localizada num descampado numa propriedade rural a dois quilômetros do vilarejo de Rio dos Cedros, é visitada todas as noites por cerca de meia dúzia de peregrinos que buscam iluminação. O profeta (que é, durante o dia, rizicultor) recebe-os, enxerga o pecado na face de cada um e indica individualmente a estratégia adequada de tiqqun – palavra emprestada dos judeus cabalistas medievais, e que quer dizer remissão. Cada pessoa e cada pecado requerem o seu próprio tiqqun – uma série de tarefas ou mandamentos (supõe-se, porque as orientações sobre o tiqqun são secretas: a pessoa recebe ordens de não revelar a ninguém o caminho de tiqqun indicado pelo profeta) cuja realização supostamente anula, reverte ou “cobre” os pecados cometidos.

Era sábado e uma tarde nublada. Quando cheguei o profeta estava jogando futebol no campo de terra ao lado da sua casa. Tive de esperar a partida terminar (o time do profeta, jogando sem camisa, ganhou por dois gols de diferença), e os dois times ficaram ainda conversando animadamente por mais meia hora, sentados num semi-círculo no centro do gramado. Eles riram, falaram em voz baixa e enxugaram interminavelmente rostos e pescoços com camisetas suadas, antes que o grupo finalmente se dispersasse e o profeta viesse gingando na minha direção.

Aguardei tomando chimarrão na varanda enquanto o profeta tomava uma chuveirada. Ele voltou descalço e ainda sem camisa, sentou-se e conversamos ali mesmo, enquanto a tarde caía azul e mosquitos e mariposas se arrebanhavam, elas ao redor da lâmpada acesa na cozinha e os mosquitos sobre nós.

Paulo. Desde quando o senhor é profeta?

João. Olha, você não me chame de profeta e não me chame de senhor.

Paulo. Vou tentar me lembrar.

João. Sou profeta desde sempre, creio, mas as pessoas começaram a me procurar faz três, quatro anos. As pessoas me chamam assim, mas não as que já vieram falar comigo.

Paulo. Você é cristão (não é uma pergunta). Não é doutrina cristã que não existem mais profetas hoje em dia? O último profeta não foi João Batista?

João. Ah, profeta é palavra que veste qualquer um. Cristão é outra. Mas, pra responder a sua pergunta, tecnicamente não. Havia profetas nas igrejas do Novo Testamento, enbora ninguém saiba exatamente que tipo de perfil o título fechava. João Batista foi um grande profeta, mas Jesus disse que qualquer um no reino do céu é maior do que ele. E qualquer um é muita gente.

Paulo. Todo cristão é profeta, então? Ou deveria ser?

João. Penso em “profeta” no sentido mais comum de todos: a pessoa que fala em nome de Deus. Como Deus pede a todo mundo que todos falem a verdade, basta, creio, falar a verdade. Quem fala a verdade é profeta.

Paulo. Isso inclui muita gente, talvez?

João. Tomara.

Paulo. O senhor (desculpe, você) sempre fala a verdade?

João. Procuro sempre dizer a verdade que cada momento comporta. Nem todo mundo quer a verdade, mas isso já é esperado.

Paulo. Agora, por exemplo, há alguma verdade que o senhor ainda não me disse e poderia me dizer?

João. Ah, muita coisa.

Paulo. Um exemplo.

João. Bom, uma verdade é que não gosto das perguntas técnicas que você faz. Esse tipo de conversa assim não leva a nada, e não tem relação nenhuma com a verdade.

Paulo. Você talvez me ajude a fazer as perguntas certas?

João. Você sabe.

Paulo. Você está me analisando?

João. Muito menos do que você a mim.

Paulo. Me disseram que você fala palavrão. É verdade?

João. Muitas vezes.

Paulo. O tiqqun é uma penitência?

João. Não. Não no sentido que você está perguntando, pelo menos. Pode ser doloroso, creio, mas não redime a pessoa nem a torna uma pessoa melhor.

Paulo. O senhor (desculpe de novo, você) jejua com certa freqüência mas não recomenda o jejum para os outros. Por que?

João. Cada um tem o seu próprio tiqqun.

Paulo. Os protestantes afirmam que a salvação é obtida apenas pela fé, os católicos crêem que as obras e a santidade pessoal são um mérito que assegura a salvação. De que lado você fica?

João. Muita coisa convencional no que você disse. Esse é o tipo de discussão que não leva a nada (mais chimarrão?). Deixe-me só dizer que para os protestantes a fé acaba sendo, na prática, uma forma especial de mérito. Uma forma sutil, supostamente superior, mas um mérito ainda assim. Talvez seja ainda pior, porque a fé é vista como um mérito que torna a conduta meritória desnecessária.

Paulo. Você simpatiza com os católicos, então?

João. Pá, não simpatizo com ninguém. Sou humano e não consigo simpatizar com quem tem uma conduta santa. Só os pecadores são interessantes.

Paulo. O senhor peca? Você?

João. O bastante para manter ainda algum interesse.

Paulo. Alguma pergunta importante que eu esqueci de fazer?

João. Muitas. Você na verdade não me perguntou nada e não quer aprender nada. O que não deixa de ser interessante.

Paulo. Como eu poderia aprender com você? Quais são as perguntas certas?

João. Ah, se você não sabe… Olha, fique comigo, não vá embora. Ajudamos amanhã a cobrir a casa do Vavá, almoçamos no clube de tiro, jogamos futebol. Semana que vem trabalhamos no arroz. Vá ficando. Ninguém que vem me ver precisa ir embora.

Paulo. O senhor está chateado porque não perguntei sobre o meu tiqqun?

João. Eu disse sem você perguntar.

Paulo. Ah, o senhor viu o pecado no meu rosto, então?

O profeta apenas sorriu.

Agradeci e fui embora.

filado do http://www.baciadasalmas.com/

Obs: gostei da definição moderna de profeta "creio, falar a verdade. Quem fala a verdade é profeta"

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