Afrasíabe estava sozinha chorando, sentada num banquinho de três pés em sua casa, quando vieram avisar que o monstro Ksyinzuiu estava se aproximando do vilarejo. Afrasíabe viu pela porta aberta a gente da vila fugindo como um rio, correndo numa só direção, mas ela mesma não se mexeu do lugar.
Quando os gritos haviam silenciado e o pó das ruas inchava para abrigar o sangue dos mortos, Ksyinzuiu ergueu o teto do casebre de Afrasíabe como se fosse a tampa de uma caixa e olhou para dentro.
– Ei, por que você não fugiu? – trovejou o monstro. – Por acaso não tem medo de mim?
– A peste levou meu marido e meu filho – disse Afrasíabe ajeitando os cabelos, sem parar de chorar e sem levantar os olhos. – Do que eu deveria fugir?
– Você por acaso não sabe que é para isso que os deuses enviam os monstros e as grandes catástrofes? Para que os homens coloquem seu próprio sofrimento numa perspectiva justa? Só grandes ameaças tem lastro para apagar dores compridas.
– Talvez você não seja uma ameaça tão grande – disse a mulher. – Talvez minha dor seja comprida demais para os recursos dos deuses.
Ksyinzuiu arregalou os olhos de peixe e rompeu numa gargalhada.
– Cá cá cá, mulher. Por causa da sua presença de espírito vou lhe dar uma escolha que nunca dei a ninguém. Você pode entregar-se voluntariamente à morte entre os meus dentes, ou pode tentar adivinhar os três segredos que juntos têm o poder de me destruir. Se você não conseguir, morrerá de qualquer forma. O que me diz? O que escolhe? Matar ou morrer?
– Não me importune com uma coisa nem outra. Se eu me entregar para morrer estarei desistindo da minha dor, que é meu bem mais precioso; se matar você, estarei trocando minha dor por uma vitória que em nada se equipara à extensão dela.
E olhou para o monstro, que tinha a altura de dois homens, a pele cor de pedra recoberta por espinhos curtos e grossos e uma horrenda cabeça de peixe que lhe saía diretamente do tronco.
– Muito bem, não posso matá-la se você não fugir ou se não vier ao meu encontro – opinou Ksyinzuiu. – Ouça outra oferta: junte-se a mim e seja o meu arauto, um anunciador da minha chegada nos lugares que devo visitar. Você é uma mulher triste, é certo que terá prazer em promulgar a desgraça.
Assim Afrasíabe tornou-se o arauto de Ksyinzuiu. Ela entrava nos vilarejos e anunciava, sem jamais levantar a voz, a iminência do açoite dos deuses. A desesperança no seu rosto era tão clara que todos desfaleciam, abandonando imediatamente a idéia de recorrer à compaixão do céu. Enquanto Afrasíabe ainda estava falando Ksyinzuiu aparecia, derrubando carroças e portões com os braços deformados e abrindo e fechando a bocarra, até que os os pés de Afrasíabe descansassem descalços no vermelho mais puro.
Um dia os dois chegaram a um vilarejo abandonado em cuja praça havia uma grande pilha de corpos em decomposição, e Ksyinzuiu falou:
– Não devemos seguir adiante, já completei o meu circuito nesta região. Todas as aldeias foram devoradas pela peste, não há mais o que matar.
E fez menção de seguir adiante, mas Afrasíabe disse:
– Esta é a aldeia para a qual viajaram meu marido e meu filho, a aldeia em que morreram comidos pela peste. Ksyinzuiu, adivinhei os seus três segredos, agora posso destruí-lo.
O monstro virou-se para olhá-la de frente.
– E quais são?
– O primeiro é o mais evidente, mas apenas quem o acompanhasse como tenho feito seria capaz de descobrir: você usa sua boca para matar, mas nunca para comer. Nos meses em que tenho sido o seu arauto nunca o vi pôr coisa alguma na boca. O segundo é este: você só mata os que não conseguem fugir, mas os cadáveres em decomposição que deixa para trás são a mesa pronta em que a peste se banqueteia. Sem os campos dos seus mortos a peste não teria como se multiplicar. Ela mata os que sua mão não consegue tocar, e matou minha família.
– Muito bem. E o terceiro?
– Ao terceiro se chega pela perspectiva dos outros dois. É verdadeiro o ditado que diz que a peste é o hálito de Ksyinzuiu, mas o monstro original está morto. O verdadeiro Ksyinzuiu foi substituído por um autômato que pode caminhar e matar mas não comer, uma estátua animada construída por alguém que desejava perpetuar a peste.
E estendeu a mão para tocar a pele de ferro de Ksyinzuiu.
– Você adivinhou os três segredos – disse o autômato. – Fui feito quando o verdadeiro Ksyinzuiu morreu. Construiu-me um homem que, como você, teve a família destruída pela peste; um homem cuja dor era tamanha que queria estendê-la de modo a comportar as futuras gerações. Deus criou o homem pela mesma razão.
– O que você quer fazer agora? – disse Afrasíabe.
– Ora, de posse dos três segredos você tem poder sobre mim e pode ordenar a minha destruição.
– Preciso pensar bem. Se deixar você viver terei de conviver com a culpa de não ter eliminado o horror que ceifou a minha família e ainda ceifará outras; se o destruir, terei de conviver com o mérito de ter livrado o mundo da destruição e da peste.
– E você não sabe o que é pior – sorriu o monstro.
– Não preciso apressar essa decisão – disse Afrasíabe, e foram caminhando juntos para o sul.
Paulo Brabo
filado da baciadasalmas.com