quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Feiúra americana

Eu quis vender. Você foi contra."
"Eu também quis vender."

"Você queria US$ 4 milhões. O corretor disse que valia US$ 3 e meio. Pagamos menos de US$ 300 mil. O mercado estava louco. A gente deveria ter vendido até por três e hoje estaríamos vivendo de renda."

As paredes da casa velha são grossas, mas você ouve a briga do casal vizinho no quintal e, depois, no quarto.

Milhões de casais americanos, como meus vizinhos, esta noite brigam por causa de dinheiro, dívidas, extravagâncias, a compra ou a venda da casa. Quem não tem culpa no cartório?

A primeira vez que fui a Londres, em 69, fiquei impressionado com a vida espartana dos ingleses. Meu colega da BBC, de quase 30 anos, dividia um apartamento de dois quartos e um banheiro com outros três jornalistas.

Aos 25 anos, meu padrão de jornalista do terceiro mundo - ainda não nos chamavam de emergentes - era mais alto em Nova York. Meu salário baixo me dava acesso a crédito. Tinha crédito e devia os tubos. Dinheiro de plástico era muito mais caro na Inglaterra.

A recessão dos 70 e a falência de Nova York renderam amarguras e oportunidades. Se não devesse tanto poderia ter comprado um apartamento de dois quartos, de luxo, ao lado da casa do prefeito por preço de terceiro mundo. Isto foi em 75. Em 90, fui entrevistar uma cantora que tinha comprado o apartamento. Valia 15 vezes mais.

Aprendemos a lição? Não. Nos 80, os masters of the universe promoviam a ganância, vendiam lixo - junk bonds - e gastavam US$ 5 milhões numa festa. Nos 90 entramos na bolha da internet. Pufffff. Na virada do século entramos na bolha imobiliária. Puffff.

A riqueza americana hoje tem muito mais papel do que produção.

Nos garantem que esta crise é pior do que a recessão dos 70 e que a queda da bolsa de 87 foi fichinha comparada com a atual. Tomara que seja verdade. Tomara que não seja. Minha atitude muda de hora em hora.

Por que os americanos não aprendem a viver como o resto do mundo? Por que uma casa comprada há 20 anos por menos de US$ 300 mil vale - ou valia - há poucos meses US$ 3 milhões e meio?

Estamos grudados na televisão para os debates políticos. Devemos trilhões. O senador McCain nos promete que vai pagar as hipotecas podres. O senador Obama promete que vai reduzir impostos para 95% dos contribuintes e dar seguro de saúde para 46 milhões de americanos.

E os Estados Unidos vão ser como antes? Não, melhor. A bolsa caiu seis dias seguidos.

No pânico financeiro de 1907, JP Morgan jogou os milhões dele na praça e acalmou o país. Agora é a vez do homem mais rico do mundo, Warren Buffet, tentar salvar o capitalismo. Injeta bilhões no mercado em baixa. E o mercado despenca.

O secretário do Tesouro esparrama dinheiro. US$ 85 bilhões para a AIG, uma das maiores seguradoras do mundo. Os executivos da empresa e seus vendedores pegam a grana, se reúnem num spa e gastam US$ 400 mil num fim-de-semana.

Deputados mostram as contas das massagens e manicures. Os americanos espumam de raiva. A história não foi bem assim, mas não há explicação perdoável. Todos nos sentimos lesados e revoltados. Forca é pouco para os CEOs e presidentes dos bancos de investimentos. Queremos esganá-los.

Nos canais econômicos, 24 horas de prejuízos por dia, o debate é sobre estatização de bancos. Modelo sueco dos 90 ou inglês?

Pela primeira vez em não sei quantos anos - de 10 a 25 - nos informam os analistas econômicos, os americanos pararam de consumir.

Uma tragédia para a economia, dizem uns. É a salvação, dizem outros.

São quase duas da manhã e o casal do lado está em ação na cama: "Eu quis vender!".
Lucas Mendes
De Nova York para a BBC Brasil

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