É uma pista falsa, naturalmente, que Deus esteja ausente no momento da transgressão. A trama coloca Deus longe, para que saibamos que em termos dramáticos está perto – quer dizer, é do seu personagem que está sendo falado. Deus tem esse álibi formidável, não estava presente no momento em que tudo foi colocado a perder, mas num sentido muito profundo a função da narrativa é colocar de forma formidável esse álibi em dúvida.
Pela mesma razão, quando acusações forem trocadas daqui a alguns parágrafos, nenhum personagem estará geometricamente mais longe da culpa do que Deus. Para chegar-se da transgressão até Deus será preciso passar da sedução à serpente, da serpente a Eva, de Eva a Adão (aqui a culpa já começa a se dissipar) e, no estágio mais distante, de Adão até Deus.
Deus posta-se perplexo na extremidade mais isenta do drama, mas esta sua posição no palco é, literariamente falando, outra pista falsa.
Essa revelação explica em parte o enigma da serpente; fica claro que sua função mais genuína na trama é colocar uma distância maior, um estágio adicional, entre a transgressão e Deus. Esta sua função despistadora é compartilhada por Eva e, num certo sentido, por Adão.
Porque é evidente que ninguém está mais presente neste momento do que Deus. A própria narrativa não consegue gastar uma linha sem denunciá-lo. Não apenas a serpente “era o mais astuto de todos os animais do campo que o Senhor Deus havia feito”, como tudo o que a serpente tem a dizer, desde o primeiro momento, diz respeito à presença do Criador e aos possíveis furos no álibi divino. “Foi assim que Deus disse?”
E não é de estranhar que seja assim, porque esta é a história dele.
Paulo Bravo
www.baciadasalmas.com
sexta-feira, 24 de outubro de 2008
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