Porque – e ignoro quantas vezes terei de voltar a este ponto – quando fala do homem Gênesis está falando de Deus. O homem é sua imagem e projeção.
Uma das coisas que diferencia a narrativa primordial de Gênesis de outros mitos da criação é o quanto a versão bíblica desmistifica a natureza. A natureza, segundo Gênesis, é morta e artificialmente animada; nada há de espiritual nela. Não há ninfas ou espíritos da floresta: a vegetação é mera comida, armazém onipresente para consumo de animais e pessoas. Os animais têm vida mas não têm alma nem futuro nem lugar de descanso; não há elfos que os protejam, não há curupiras que os representem.
O sol não é ainda nosso irmão nem a lua nossa irmã, como mais tarde revelaria Francisco; os astros são equipamentos, utilitários: literalmente, “luminárias”. A terra não é de forma alguma nossa Mãe, mas duro receptáculo e prosaica matéria-prima.
Para o autor de Gênesis, o mundo natural é inteiramente desprovido de misticismo; sua cosmovisão é científica (para usar um termo anacrônico mas estranhamente preciso) em sua rigorosa ausência de deslumbramento.
Deus, propõe esta história, está incrivelmente ausente da natureza. O mundo natural é mero resultado da industriosa mão-de-obra divina: a natureza é sua confecção, sua criação – algo que ele fez, não algo que faça parte da sua essência ou com o que ele se digne a se identificar.
Pois desde o primeiro momento Deus não será com exclusividade o deus do trovão, o deus do Sol, o deus da colheita, o deus da fertilidade, o deus das florestas, o deus dos rios, o deus das tempestades, o deus do mar; não será o deus das moscas, dos sapos, dos chacais, o deus com cabeça de leão ou de cordeiro. Embora alegue ser criador dessas coisas, estando portanto indelevelmente associado a todas, ele se recusará terminantemente a identificar-se com qualquer uma.
A narrativa é assim, evidentemente, para que na história Deus esteja sozinho.
Neste universo Deus não tem companhia, não tem conselheiros e não tem patrocinadores. É um self-made man, e como não há qualquer recurso espiritual na natureza, ele dependerá de seus próprios recursos para resolver qualquer problema que surgir a partir da sua criação – isto é, a partir daquilo que ele fez. Deus é, precisamente como Adão, senhor do seu mundo, inteiramente viril e engenhoso e independente e livre; como o homem adulto, é plenamente capaz e empreendedor, pronto para responder pelas consequências dos seus atos.
A moral e a reviravolta da história está em que o homem é a única projeção de Deus, a única ferramenta que ele usa para falar de si mesmo. Pois embora se recuse terminantemente a identificar-se com lugares, animais ou forças da natureza, ele se identificará desde o começo, descaradamente e para sempre com o ser humano.
Paulo Brabo
sexta-feira, 5 de dezembro de 2008
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